terça-feira, 30 de junho de 2015

AS ROSAS





Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;

Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
Da ilusão.

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
As graças e o perfume.
Rosas que sois então? – Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.

Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
Pereceis;
Mas, não... Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.

Machado de Assis,
in 'Crisálidas'

DIAS PERDIDOS



"Há dias e que tudo é sem remédio,
em que tudo começa e acaba torto.
Uma folha caiu:
era um pássaro morto.

Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono.
Nada nos fala, nos atrai, nos chama.
Choveu, parou a chuva,
ficou, porém, a lama.

Um banco no jardim. Árvores nuas,
um cisne velho, um tanque, água limosa,
nem a relva ficou,
quanto mais uma rosa.

Há barcos, há gaivotas sobre o rio,
e nas ruas há gente, há muitas casas.
Mais um dia perdido:
arrancaram-lhe as asas."


Fernanda de Castro,
In Urgente

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O TEATRO DAS CIDADES


Arte de Eduard Gordeev

Qualquer tempo é um tempo duvidoso 
assim o meu cercado de cidades 
plataformas instáveis 
praticáveis cobertos de infinita gente náufraga 
que se inclina nas águas como um palco
Paro na convergência dos estrados 
chove já sobre a raça ameaçada 
Incertas multidões em volta passam 
contemporâneas falam interpretam 
a duvidosa língua das imagens
Assim no teatro abstracto das cidades 
morrem palavras sobre um palco náufrago
O tempo cobre o céu que se enche de água

Gastão Cruz 
in O Pianista



segunda-feira, 8 de junho de 2015

CREPÚSCULO DE OUTONO




O crepúsculo cai, manso como uma benção. 
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito… 
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam 
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços. 
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar 
O terror augural de encantos e feitiços. 
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve 
Todo o verde que a vista espairecendo vejas, 
Mais negros sobre a alvura unânime da neve, 
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio 
Do rio, e isso parece a voz da solidão. 
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo… 
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha 
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos, 
Flocos, que a luz do poente extática semelha 
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia. 
E tamanha esperança e uma tão grande paz 
Avultam do clarão que cinge a serrania, 
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


Manuel Bandeira 
De A cinza das Horas 


domingo, 7 de junho de 2015

VI




Junho é um grasnar solitário,
é uma gralha
que ao colo da araucária retorna.
As garras da ave, desprendidas do dia,
soltam as sementes
que meus olhos em silêncio recolhem.

Fernando Campanella
de "Efemérides"


O GUARDADOR DE REBANHOS




"Se às vezes digo que as flores sorriem
Se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque sou só essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
É a Natureza a despertar!"

Fernando Pessoa -
(Alberto Caeiro)
 in O Guardador de Rebanhos

sábado, 6 de junho de 2015

PASTORAL




Não há, não, 
duas folhas iguais em toda a criação.
Ou nervura a menos, ou célula a mais, 
não há de certeza, duas folhas iguais.
Limbo todas têm, 
que é próprio das folhas; 
pecíolo algumas; 
bainha nem todas. 
Umas são fendidas, 
crenadas, lobadas, 
inteiras, partidas, 
singelas, dobradas.
Outras acerosas, 
redondas, agudas, 
macias, viscosas, 
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes, 
nos actos distantes, 
mesmo semelhantes 
são sempre diferentes.
Umas vão e caem no charco cinzento, 
e lançam apelos nas ondas que fazem; 
outras vão e jazem 
sem mais movimento. 
Mas outras não jazem, 
nem caem, nem gritam, 
apenas volitam 
nas dobras do vento.
É dessas que eu sou.

António Gedeão ,
in Poesias Completas

quinta-feira, 4 de junho de 2015

PAUSA



Uma estrela, tão bela! É a margarida 
na cerca eflorescente, e os jardins, 
e o segredo do início, e a dor dos fins,
e a vida, e a vida, sobretudo a vida ...
E a vertigem do som, despenhadeiro
onde aladas manhãs mal se projetam 
e as vagas tardes espraiam-se e inquietam 
a alma, e vem de tudo um espinheiro 
e ao mesmo tempo a paz indefinível 
que cai sobre o silêncio do ser triste 
e o que acaso existe ou não existe 
como um ardor de brasa inconsumível, 
e a esperança mais alta e de tal sorte 
perseguida, e o sol cálido e a luz serena 
da noite, e a estranha paz que longe acena ...

Alphonsus de Guimaraens Filho

terça-feira, 2 de junho de 2015

HAICAI




O vento outonal
tece um tapete folhado
ao longo da rua.

Delores Pires,
em O Livro dos Haicais




AVE




ave
incrustada no espaço
ponto azul
isolada
(pedra
em parábola
no poema
espaço-tempo)
projeta
a fuga
no ângulo
de um voo
crê
demasiado em seu
escudo plumagem
ignora
quem seja
esboço apenas

Ricardo Augusto dos Anjos
De ‘Após a tragédia’