quinta-feira, 29 de novembro de 2012

VIAJAR...



...
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem
e a terra.O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra,
a noite e a luz,os astros, as águas, os peixes e a treva,
os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário
daquilo que era nómada;sabe que o homem não foi feito para
ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.

Al berto
em O Anjo Mudo

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

GOETHE



'A vida é a infância de nossa imortalidade.'

Goethe

terça-feira, 27 de novembro de 2012

PURO CANTO



Bendito o que ideou o primeiro jardim do mundo
E benditas as mãos inumeráveis
Que multiplicaram os jardins do mundo.
Os jardins, filhos da natureza e do espírito.
Os jardins, em que as arvores insignificativas da floresta

Tomam posturas humaníssimas
De melancolia e de êxtase.
Em que as águas insignificativas da Planície
Se transmudam em canais sonhadores.
Em que os rudes caminhos do vale e da montanha
Se geometrizam em curvas que são como os serenos pensamentos.

Bendito o que ideou o primeiro jardim do mundo
E os que semearam pelo mundo
As manchas de sombra fresca e de beleza
dos jardins inumeráveis...

Tasso da Silveira 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

CONQUISTA



Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!


Miguel Torga,
in 'Cântico do Homem'

domingo, 25 de novembro de 2012

ESTOU CANSADO




Estou cansado, é claro, 
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. 
De que estou cansado, não sei: 
De nada me serviria sabê-lo, 
Pois o cansaço fica na mesma. 
A ferida dói como dói 
E não em função da causa que a produziu. 
Sim, estou cansado, 
E um pouco sorridente 
De o cansaço ser só isto — 
Uma vontade de sono no corpo, 
Um desejo de não pensar na alma, 
E por cima de tudo uma transparência lúcida 
Do entendimento retrospectivo... 
E a luxúria única de não ter já esperanças? 
Sou inteligente; eis tudo. 
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, 
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, 
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
... 

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa),
 in "Poemas" 

sábado, 24 de novembro de 2012

JOSÉ LUIS PEIXOTO


...

"quando nasci. esperava que a vida.
me trouxesse. a terra. quando nasci.
esperava que a vida. me trouxesse.
as árvores. e os pássaros. e as crianças.
quando nasci. tinha o mundo. todo.
depois dos olhos. depois dos dedos.
e não percebi. não percebi. nada.
nunca imaginei. quando nasci. que a vida.
quando nasci. já era a escuridão. a escuridão.
em que estava. quando nasci."

José Luís Peixoto

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

SUBIA A LUA, LEVE...



Um luar fluido e veludoso como um bálsamo
Ungia a noite voluptuosa e ardente.
A sua luz era tão branca que tornava o céu diáfano...
Subia a lua leve como o pensamento.

Eu dialogava com o silêncio... Uma toada rústica
De flautas e violões transportou-me à saudade.
E, abstrato de mim mesmo, eu te bendisse, ó música,
Que da tristeza de pensar me libertavas!


Da Costa e Silva  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

MOMENTO



Nostalgia do céu e solidão dos anjos.
Ah! tudo se desfez ...Buscai-me nas estrelas.
Buscai-me, sim buscai-me em melodias louras.
Quem virá de outros céus, quem cantará nas luzes?
Tudo é branco demais e transparente... O riso
Vem de longe demais. As mãos afagam a morte.
As mãos se envolvem em frio e em asas e em neblinas.
O coração não volta ao mundo abandonado.
Tudo é longe demais e fluido. Eu ouço os anjos...
Sou a sombra perdida em músicas e chamas.
Sou alguém que perdeu o reino e está de bruços
Sofrendo a solidão e o exílio, está de bruços,
Desterrado da paz e do país dos anjos...

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LUZ



Luz — concepção primeira e cósmica da Treva!
por esse teu fulgor lançares, dispenderes,
a beleza da Forma o olhar atrai e enleva,
goza a vista os da Cor emotivos prazeres.

Por ti flutua no ar dos perfumes a leva
és o verbo de Deus, o poder dos poderes,
o alimento vital que as cousas todas ceva,
o calor que impulsiona a máquina dos seres.

És o semen do Sol, que a Mãe-Terra fecunda,
que na treva germina e várias formas toma,
de cuja produção a humanidade é oriunda.

Possa eu sempre te ver por tudo distribuída,
luz que és som, luz que és cor, que és sangue força e aroma
que és a idéia a medrar no cérebro da vida.


Gilka Machado — 
in Cristais Partidos

terça-feira, 20 de novembro de 2012

RECORDAÇÃO



E tu esperas, aguardas a única coisa 
que aumentaria infinitamente a tua vida; 
o poderoso, o extraordinário, 
o despertar das pedras, 
os abismos com que te deparas. 

Nas estantes brilham 
os volumes em castanho e ouro; 
e tu pensas em países viajados, 
em quadros, nas vestes 
de mulheres encontradas e já perdidas. 

E então de súbito sabes: era isso. 
Ergues-te e diante de ti estão 
angústia e forma e oração 
de certo ano que passou. 


RAINER MARIA RILKE 
In O Livro das Imagens, 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

POR AÍ ALÉM



Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.


Carlos Drummond de Andrade,
in Poesia Errante 

PURGATÓRIO


É preciso expiar
a cada dia
a culpa do primeiro
sangue derramado
do desencontro de ontem
da falta de apetite
da perda da memória

Antonio Fernando De Franceschi
In: Tarde Revelada Poemas

domingo, 18 de novembro de 2012

O OFÍCIO DA PAIXÂO



Exercer a cada dia
o ofício da paixão :
um vento estranho
varre a tarde
bate as portas
abre caminho nas pedras

a cada dia o ofício
humano da paixão
como quem buscasse
com os olhos
o sentido das horas

entre a luz e a sombra
um frágil universo se equilibra
com suas tortuosas montanhas

ROSEANA MURRAY
in Pássaros do Absurdo

terça-feira, 13 de novembro de 2012

CITAÇÃO


"Não existe caminho para a felicidade.
A felicidade é o caminho."

Mahatma Gandhi

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

SOMOS O RIO



Somos o tempo, somos a famosa
parábola de Heraclito, o Obscuro.
Somos a água, não diamante duro
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos esse rio
a olhar-se no rio. A sua imagem
muda na água do espelho entre as margens,
no rio que varia, fogo cego.
Somos o rio vão, predestinado
rumo ao seu mar. De fogo está cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda lesta.
E no entanto há algo que ainda resta
e no entanto ainda há algo que se queixa.

Jorge Luís Borges,
 in Os Conjurados

domingo, 11 de novembro de 2012

O REGRESSO



Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina,
in "Como se desenha uma casa"

sábado, 10 de novembro de 2012

DILEMA




O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.


Antônio Cícero
de Guardar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ALEGORIA



Segunda
De poetas
e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo :
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe : saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as : tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.
Dizias ontem
que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo :
o verão não morreu, esta pedra é o verão.
E tudo permanece.
E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins
In:'Paralelo Ao Vento'

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O SILÊNCIO



O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silencio maior:
antecâmara do ultimo,
que anuncia outro depois.


Dora Ferreira da Silva
Poesia Reunida

terça-feira, 6 de novembro de 2012

FERNANDO PESSOA



É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!
Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

GARÇA


1.

de relance
mero
surpresa
é te colher
em vôo:

o já fugaz
— ponto:

em riste
no horizonte

2.

a penas
te desenho
em derrisão:

asas taorminas
securas
branco arco sob o céu

3.

pelo estuo das águas
astúcia:

flaminga?
flamínia?

no claro em pluma
alvejo sem rasura
a branca garça
em sua alvura

Antonio Fernando de Franceschi
In: . Sal

domingo, 4 de novembro de 2012

DUAS BORBOLETAS SAÍRAM AO MEIO DIA,



Duas borboletas saíram ao meio-dia,
valsaram em cima de um arroio,
flecharam para o firmamento
e repousaram sobre um raio de luz;
Depois partiram as duas
por cima de um mar reluzente,
ainda que porto algum até hoje
haja mencionado a chegada.
Se falou com elas uma ave distante,
se no mar etéreo encontraram
uma fragata ou um cargueiro,
não fui informada.

Emily Dickinson
Tradução de Paulo Mendes Campos

DEVAGAR, O TEMPO TRTANSFORMA TUDO EM TEMPO



Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

Os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

Por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.

No entanto, a eternidade existe.
Os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
Os instantes do teu sorriso eram eternos.
Os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

Foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto,
em “A Casa, A Escuridão”

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

EM VIAGEM



Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de áspero monte
E os sóis e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Fantasmas que surgiam do horizonte
A acometer meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...
Atrás deles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!
          

Antero de Quental,
 in "Sonetos"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

PÓSTUMA



Noite fechada, lúgubre, sombria.
Céu escuro, tristíssimo, nevoento,
Relâmpagos, trovões, água, invernia
E vento e chuva, e chuva e muito vento!

Abro um pouco a janela, úmida e fria;
Quedo a ver e a escutar, por um momento
O rugido feroz da ventania
E o rasgar dos fuzis no firmamento.

Quero vê-la no céu... e o céu escuro!
E, sem temer que chova e o vento açoite,
Abro mais a janela... abro, e murmuro:


Ah! talvez acalmasse o meu tormento,
— Se eu pudesse chorar, como esta noite!
— Se eu pudesse gemer, corno este vento!

Raul Machado