sexta-feira, 28 de setembro de 2012

CANÇÃO



Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.

Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:“
o antepassado”.

Eras um poema
Cujas palavras
Cresciam dentre
Mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
Tempo sem rastro,
De esquecimentos
Atravessados.

Disso é que sofre
A amargurada
Flor da memória
Que ao vento fala


Cecília Meireles
In Retrato Natural

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MAR




Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Era um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem vos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!


Miguel Torga
In: Antologia Poética

terça-feira, 25 de setembro de 2012

E DEPOIS



Os labirintos 
que cria o tempo 
se desvanecem 
 
(só fica 
o deserto) 
 
O coração 
fonte do desejo 
se desvanece, 
 
(só fica 
o deserto) 

A ilusão da aurora 
e os beijos 
se desvanecem 
 
só fica o deserto 
um ondulado deserto 


Federico Garcia Lorca 
Tradução: William A. de Melo

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

SIMPLICIDADE



Vida no vento,
Vida na rosa,
Vida no fogo,
Vida na pedra,
Vida na água,
Vida na luz,
Vida no pranto,
Vida no húmus,
Vida na vida do amigo,
Vida no silêncio,
Vida na angústia,
Vida no mistério da criança,
Vida na vida
Cantando, cantando sempre
Na infinita vida da morte.

Adalgisa Nery
In Erosão 

domingo, 23 de setembro de 2012

SONETO DE PAZ



Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra
Pode ser outra terra, de outra gente,
Para o prazer armada e competente
E desarmada para a voz da guerra.

No chão, olhando o céu que nos desterra,
Sem terminar falei, presente, ausente,
Ó vento desatado da vertente,
Ó doce laranjal sem fim da serra!

Mais tarde me esqueci, mas esse instante
De muito antiga perfeição campestre
Fez-me constante um pensamento errante:

Era o sem tempo, a paz da eternidade
Unindo a luz celeste à luz terrestre
Sem solução de amor e de unidade.

Paulo Mendes Campos
In: O Domingo Azul do Mar

ONESTALDO DE PENNAFORT



II

Nuvens que ides vogando pelo espaço
- tão alto quanto o meu mais alto sonho –
também eu de vapores me componho
e, igual a vós, em água me desfaço.

Onestaldo de Pennafort
In: Poesia

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

HORA DA SAUDADE



A tarde se esvai
lentamente
esgarçando suas luzes
em infinitos cristais
a tarde se esvai
e na alma fica um silêncio
de sinos mudos
uma espera ansiosa
de estrelas
uma saudade fininha
de não se sabe o quê.

Roseana Murray 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

NOTURNO



Aquela última janela acesa
No casario
Sou eu...

Mario Quintana,
in Velório sem defunto

terça-feira, 18 de setembro de 2012

HELEN KELLER



"Usai vossos olhos como se amanhã tivésseis
de ficar cegos. E o mesmo métodos pode ser 
aplicado aos demais sentidos.
Ouvir a música das vozes e o 
canto dos pássaros,
como se tivésseis de ficar surdos amanhã. 
Aspirai o perfume das flores. 
Tirai o melhor possível de cada sentido. 
A melhor realização do mundo é 
fazer melhor de que se é capaz" 

Helen Keller

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

AS PALAVRAS



As palavras são mansas e serenas.
São ovelhas submissas, que, tangidas,
descem alvas a encosta das montanhas.

Um pensamento mau é um lobo rude,
que surgindo no meio do rebanho,
perturba todo o bando de palavras.

Tangei-as com enlêvo, com ternura,
desviando-as da fera, que, à socapa
quer dispersá-las para o precipício...

Se o vosso ofício for o de poetas,
pastores de Ideal, tangei com lírios
o rebanho infinito das palavras!

Antonieta Borges Alves
In Lírios de Pedra 

domingo, 16 de setembro de 2012

MÚSICA



Depois do silêncio, 
o que mais se aproxima de expressar
o inexprimível é a música.

Aldous Huxley

sábado, 15 de setembro de 2012

POEMA PARA HABITAR



A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem
os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até
que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.


Albano Martins

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

BORBOLETA AZUL




Pequenina borboleta
azul no vento esvoaça:
um tremor de madrepérola
flameja, reluz e passa.
Num átimo, num piscar
de olhos, eu vi assim
flamejante e reluzente
a sorte passar por mim.

Hermann Hesse ,

in Andares

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ALICE RUIZ


a noite
mais longa
dessa vida

no céu
o cometa passa
na terra
meu pensar
te abraça

você 
irmão
filho
amigo

não está
mas fica
enfim
comigo

Alice Ruiz,
in dois em um

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

SONETO



N'augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.

São minhas crenças divinais, ardentes
- Alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos.

Quando da vida, no eternal soluço,
Eu choro e gemo e triste me debruço
Na lájea fria dos meus sonhos pulcros.

Desliza então a lúgubre coorte,
E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.

Augusto dos Anjos

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

MOSAICO



És mosaico de seixos rolados de longe
Na torrente da vida.
Até o gesto, até a fala, até o semblante
Lembra alguém, é de alguém que se repete.
Tudo em ti, antes de ti, já foi vivido.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

terça-feira, 4 de setembro de 2012

DEPOIS



Será sempre agora.
Viajarei pelas galáxias
universo afora.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

MANHÃ NO MEU JARDIM



Ha festas nas campo, ânsias que crescem
Sob a cortina verde da ramagem,
Enquanto as samambaias estremecem
Aos beijos brandos da sublime aragem!

Uns retalhos de sol sobre a folhagem
Tremeluzindo, das alturas, descem
E no fundo azulado da paisagem,
De várias cores, um tapete tecem . . .

Ha mensagens de olências nos canteiros !
Chovem pétalas brancas, perfumadas,
Da fronde angelical dos jasmineiros . . .

E a manhã, como uma águia de marfim ,
Desce dos chapadões das madrugadas
E abre as asas de luz no meu jardim!


Miguel Jansen Filho

sábado, 1 de setembro de 2012

EVOLUÇÃO



"Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta ...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo ...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo ...

Hoje sou homem - e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade ...

Interrogo o infinito e às vezes choro ...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade."

Antero de Quental