sábado, 20 de dezembro de 2014

"NOSTÁLGICA N.º 2"



Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza em meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida










NÃO SEI





Não sei onde começa o céu e nem acaba.
O infinito se dissolve como números na névoa.
Vou-me, porque a voz que chama é a mesma que chamava.
Será a mesma, acaso, a mão que ainda me leva?



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

ORÁCULO




Quieta coruja do bosque negro,
onde o azul-indigo e o verde gaio?
Nos teus rios? No monte grego?
Ou na Fenicia praia?

Agora, tarde. Mas, ontem, cedo.
Árvore exausta. Cansado remo.
Clássica luz de maio.

Ah! fuga antiga! Nas águas crespas,
oscilam juntos Polibio e Laio.
Sempre serpentes bebendo
estrelas.
E um vento que desmaia.

Dança Eufrosina por cinzas Tênues.
E a transparente sombra de Tália
move na areia seus vãos desenhos.
-Só nas nuvens Aglaia!

Cecília Meireles,
in Vaga Música


sábado, 13 de dezembro de 2014

ASSIM




Assim como um cheiro de curral e estrume,
mugidos nas pastagens, fresco
fluir de água (de olhos d’água), assim
como se em sítios úmidos, nos canteiros
em socalcos, o verde das folhagens,
os frutos já de vez, eis que agora
o que nos vem é este gostoso vento
rural, vento molhado das manhãs
que se banham nuas nas águas sem malicia.



Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

CONTEMPLAÇÃO





Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.

Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.

Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde somos todos estrangeiros?
Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.

Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, vôo,
- sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos 
quando já foram sofridos.

Tão pouco somos, - e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.

Entre o desejo do itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga 
mais que o itinerário e o desejo.

Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
Confundiram-se.

E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência...Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.

Não acuso nem perdôo.
Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?

Eu não estava presente, quando formaram 
a voz tão frágil dos pássaros.

Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?


Cecília Meireles
In: Mar Absoluto