sexta-feira, 31 de outubro de 2014

PEQUENO POEMA DE APÓS CHUVA




Frescor agradecido de capim molhado
Como alguém que chorou
E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada
alegria
Por ter a vida
continuado...

Mario Quintana
In Baú de Espantos


ORAÇÃO DA NOITE



Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, - embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...

Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!

Que o sonho deite bênçãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.

Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!... 

Cecília Meireles,
in Nunca Mais e Poemas dos Poemas




quarta-feira, 29 de outubro de 2014

IMAGEM



És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...

A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...


Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas




MICROCOSMO



Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas...
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

MISTÉRIO




Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…

Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!

Florbela Espanca 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

RIO ABAIXO




Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga...
Quase noite. Ao saber do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos.Curva os bambuais o vento.

Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
Desmaia agora o acaso. A noite apaga
A derradeira luz do firmamento ...
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.

Um silêncio tristíssimo por tudo
Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fímbria do horizonte mudo:

E o seu reflexo pálido, embebido
Como um gládio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.


Olavo Bilac
In Melhores Poemas

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MEMÓRIA ATÁVICA



Em algum lugar
deste infinito mistério
- que é meu ser -,
a emoção primitiva
brilha
e reflete
a memória de todas as eras.


Adélia Maria Woellner






segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ATENTA AOS ENCANTOS DO JARDIM...



"Atenta aos encantos do jardim das magias, 
abandonei-me no tempo, diluí-me no espaço. 
Fiz-me roseira, só para compreender que, 
os espinhos no caule, são escada para alcançar a Flor."

Adelia Maria Woellner


domingo, 19 de outubro de 2014

FLORAL



É isso.É primavera.
estou feliz, em febre.
Outros
politizam suas dores.
Eu
me polenizo
ou polemizo
- com as flores.


Affonso Romano de Sant'Anna,
in Poesia Reunida






segunda-feira, 13 de outubro de 2014

ALONGO-ME



O rio nasce 
toda a vida. 
Dá-se 
ao mar a alma vivida. 
A água amadurecida 
a face 
ida. 
O rio sempre renasce. 
A morte é vida. 

JOÃO GUIMARÃES ROSA 
In Magma, 1936



quinta-feira, 9 de outubro de 2014

RESQUÍCIO



Às vezes
a dor de chuvas passadas
cai em mim tão fina,
reelaborada,
a ponto de não ser eu
assim mais que uma bolha
na espuma da tarde
molhada.
 
Fernando Campanella






CHOVE DENTRO DA MINHA ALMA




Ouço bem a chuva que dentro da minha alma cai.
Debruço-me num tempo erguido pela nostalgia
e a chuva é mais fria.
Procuro em meu coração uma tristeza qualquer;
talvez assim encontre aquecimento
e mude o ritmo da chuva
por algum momento.
Busca em vão.
A chuva continua em compasso firme e lento
desacompanhada de vento.
Procuro em meu coração
um segundo de descanso
e talvez de exultação;
novamente recorri em vão.
Chove dentro da minha alma
o pranto das noites frias
e das inumeráveis tristezas sem razão.
 
Adalgisa Nery 


sábado, 4 de outubro de 2014

I




Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando.

Mario Quintana, 
in A rua dos catavaentos


IMAGEM




O gato é preguiçoso como uma 
segunda-feira.

Maio Quintana,
in Hora H






CANÇÃO DE OUTONO




O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida…

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo…

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma…
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!


Mario Quintana 
in Canções

VERANICO



Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos.
A cidadezinha modorreia...A tarde
Avança, lentamente, como o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga
O poema empaca, o poeta adormece
De chatice
A vida continua indiferente.

Mario Quintana,
in: Preparativos de Viagem




FAMÍLIA DESNCONTRADA



O verão é um senhor gordo sentado na varanda 
reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho
tiritante. O outono, um tio solteirão.
A primavera, em compensação, é uma menina 
pulando corda.

- Mario Quintana, 
in: Caderno H, 1973.

HAI-KAI DE OUTONO




Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?

Mário Quintana,
in Preparativos de Viagem


PASSARINHO NA TARDE DE SÁBADO




Como se fosse o primeiro passarinho do mundo
Na primeira manhã do mundo,
Voa e revoa 
Por cima da praça modesta
Onde velhinhos sentados
Fazem um pouco de sesta.
Voa e revoa, inquieto,
Por cima da gente que passa
Apressada,
Por cima das árvores
Por cima da estátua eqüestre 
Que está no meio da praça.
Esvoaça,
Esvoaça
Alegre!
Passarinho eu te acho uma graça...
Só uma coisa te peço, passarinho de 
minh'alma:
Não me faças nenhum descuido em cima
do cavalo da estátua!

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem



SER E ESTAR



A nuvem, a asa, o vento,
a árvore, a pedra, o morto...

tudo o que está em movimento,
tudo o que está absorto...

aparente é esse alento
de vela rumando um porto

como aparente é o jazimento
de quem na terra achou conforto...

pois tudo o que é está imerso
neste respirar do universo

- ora mais brando ora mais forte
porém sem pausa definida -

e curto é o prazo da vida...

e curto é o prazo da morte.

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural


SILÊNCIO.SOLIDÃO SERENIDADE.





"Quero morrer na selva de um país distante...
Quero morrer sozinho como um bicho!

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o seu poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no céu!

E todos estes que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!"

Mario Quintana
Esconderijos do Tempo - 1980


O VENTO E A CANÇÃO



para Tania Franco Carvalhal

Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer...

- é que o voo do poema não pode parar.

Mario Quintana
In 80 Anos de Poesia


CHÃO DE OUTONO




Ao longo das pedras irregulares do calçamento
passam ventando umas pobres folhas amarelas em pânico,
perseguidas de perto por um convite-de-enterro,
sinistro,tatalando ,aos pulos, cada vez mais perto,as
duas asas tarjadas de negro.

Mario Quintana
In Sapato Florido

PAUSA




Na pauta das horas há um instante de
grave, serena pausa...
É quando o último grilo parou de cantar...
E ainda não começou o canto do primeiro
pássaro...

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho.



OS PÉS



Meus pés no chão
Como custaram a reconhecer o chão!
Por fim os dedos dessedentaram-se no lodo
macio, agarraram-se ao chão...
Ah! que vontade de criar raízes!

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural



O CÁGADO



Morava no fundo do poço.
E nunca saiu do poço.

Costumava tormar sol numa saliência da parede,
quando a água chegava até ali.
Nas raras vezes que isto sucedia, ficávamos a olhá-lo
impressionados, como se estivéssemos diante do
Homen da Máscara de Ferro.

Que vida!
Era o único bicho da casa que não sabia os nossos
nomes, nem das mudanças de cozinheiras, nem o
dia dos anos de Lili.

Não sabia nem queria saber.

Mario Quintana
In 'Sapato Florido' (1948])




QUANDO EU MORRER




Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Mario Quintana
In Os Melhores Poemas

XXXI




É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...

E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!

Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:

Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine... 

Mário Quintana ,
in A Rua dos Cataventos


PREPARATIVOS PARA A VIAGEM




Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face
do Senhor...

os próprios Anjos te invejarão.

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


A CANÇÃO DA VIDA



A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Mario Quintana 
de Esconderijos do Tempo



A CANÇÃO DO MAR




Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...

O mar é embalado
Pelos afogados!

O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar...

São eles que tentam
Que tentam falar!

Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...

Um dia viremos 
Vestidos de algas

Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas

Um dia viremos
Com barcos e remos

Um dia...

Dorme, filhinha...
São vozes, são vento, são nada...


Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

O ADOLESCENTE




A vida é tão bela que chega a dar medo.

Não o medo que paralisa e gela ,
Estátua súbita,
Mas

Esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
O jovem felino seguir para a frente farejando o vento
Ao sair pela primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
As folhas contam-te um segredo
Velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida nova e anda nua
Vestida apenas com o teu desejo!


Mário Quintana
In apontamentos de história sobrenatural

VIVER




Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforecentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar...ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar,
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!


Mario Quintana,
In: Baú de Espantos

UNI-VERSO




“Treme a folha no galho mais alto” – escrevo.
Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom
da terra, do capim chovido...
Parece que quer vir um poema...

Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente,
a linha que escrevi no alto da página. Depois de 
longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. 
Assim não ficará tão só enquanto aguarda as 
companheiras.

O vento fareja-me a face como um cachorro.
Eu farejo o poema. Ah, todo o mundo sabe que a
poesia está em toda parte, mas agora cabe toda 
ela na folha que treme.

Por que não caberia então em um único verso? 
Um uni-verso.

Treme a folha no galho mais alto.

(O resto é paisagem...)

Mário Quintana,
in caderno H


CHOVE




Chuva
Chuva
Chuva
Vontade
Chuva
De fazer não sei bem o que seja
Vontade de escrever Sagesse, de Verlaine
E a tarde gris, tão viúva,
Vai derramando perenemente
as suas lágrimas de chuva
Abundantes
Como lágrimas de fita cômica
Cômica
Cômica

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

O MUNDO DE DEUS




Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que 
os primeiros astronautas russos, os quais declararam, 
ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, 
deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas
metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac:
“O deserto é Deus sem os homens”.

Mario Quintana,
Caderno H - 1973

O VENTO E A CANÇÃO




Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o vôo do poema não pode parar."

Mario Quintana,
in Baú de Espantos


A VIAGEM



Como é bela uma asa em pleno voo...
Uma vela em alto-mar...
Sua vida toda ela! - está contida
Entre o partir e o chegar...

Mario Quintana 
in “A cor do Invisível”

QUEM SERÍAMOS?



Veio um instante, partiu de novo,
Leve, sem nome...
Para que nomes? Era azul e voava...
No véu das horas punha o seu motivo.
Partiu. E nem
Ficou sabendo
Como eu, acaso, me chamava...

Mario Quintana ,
in Apontamentos de história sobrenatural,


O AMIGO



Amigo é a criatura que escuta todas as nossas 
coisas sem aquela cara que parece estar 
dizendo: - E eu com isso?

Mario Quintana
Caderno H


PEDRA ROLADA




Esta pedra que apanhaste acaso à beira do caminho
- tão lisa de tanto rolar -
é macia como um animal que se finge de morto.

Apalpa-a... E sentirás, miraculosamente,
a suave serenidade com que os mortos recordam.

Mortos?! Basta-lhes ter vivido
um pouco
para jamais poderem estar mortos

- e esta pedra pertence ao universo deles,

Deposita-a
no chão, 
cuidadosamente...

Esta pedra está viva!


Mario Quintana, 
in Apontamentos de Historia sobrenatural


JARDIM INTERIOR



Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Mario Quintana , 
in A Cor do Invisível, 1989



CANÇÃO DE INVERNO




O vento assobia de frio
Nas ruas da minha cidade
Enquanto a rosa-dos-ventos
Eternamente despetala-se...

Invoco um tom quente e vivo
_ o lacre num envelope? -
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me

Sinto-me naquela antiga Londres
Onde eu queria ter andado
Nos tempos de Sherlock - o Lógico
E de Oscar - pobre Mágico...

Me lembro desse outro Mário
Entre as ruínas de Cartago,
Mas só me indago: - Aonde irão
Morar os nossos fantasmas?!

E o vento, que anda perdido
Nas ruas novas da Cidade,
Ainda procura, em vão,
Ler os antigos cartazes.


Mário Quintana,
in Apontamento de História Sobrenatural



VII



 Da voluptuosidade

Tudo, mesmo a velhice, mesmo a doença,
Tudo comporta o seu prazer...
E até o pobre moribundo pensa
Na maneira mais suave de morrer... 

Mario Quintana
In: Espelho Mágico



FRUSTRAÇÃO




Outono: essas folhas que tombam na água parada
dos tanques e não podem sair viajando pelas 
correntezas do mundo...

Mario Quintana,
in Caderno H



“PAISAGÍSTICA



O conforto, a higiene, sim...
No entanto, um ranchinho de barro e sapé vai muito
melhor com a paisagem.
Um ranchinho de barro e sapé parece brotado da terra,
faz parte da natureza, não contradiz as árvores e o céu.
E é, também, tão humano...”

Mario Quintana,
in Caderno H

CANÇÃO DA PRIMAVERA



Um azul do céu mais alto,
Do vento a canção mais pura
Me acordou, num sobressalto,
Como a outra criatura...

Só conheci meus sapatos
Me esperando, amigos fiéis,
Tão afastado me achava
Dos meus antigos papéis!

Dormi, cheio de cuidados
Como um barco soçobrando,
Por entre uns sonhos pesados
Que nem morcegos voejando...

Quem foi que ao rezar por mim
mudou o rumo da vela
Para que eu desperte, assim,
Como dentro de uma tela?

Um azul do céu mais alto,
Do vento a canção mais pura
E agora... este sobressalto...
Esta nova criatura!

Mario Quintana 
de 'Nariz de Vidro'

A GENTE AINDA NÃO SABIA



A gente ainda não sabia que a Terra era redonda.
E pensava-se que nalgum lugar, muito longe,
Deveria haver num velho poste uma tabuleta qualquer
— uma tabuleta meio torta
E onde se lia, em letras rústicas: FIM DO MUNDO.
Ah! Depois nos ensinaram que o mundo não tem fim
E não havia remédio senão irmos andando às tontas
Como formigas na casca de uma laranja.
Como era possível, como era possível, meu Deus,
Viver naquela confusão?
Foi por isso que estabelecemos uma porção de fins de mundo...

Mario Quintana
de 'Nariz de Vidro'



EU FIZ UM POEMA




Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa
eu fiz um poema belo como um vitral
claro como um adro...
Agora
não sei que chuva o escorreu
suas palavras estão apagadas
Alheias um à outra como as palavras de um dicionário
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de 
uma cidade morta.
O vulto de um velho arqueólogo curvado sobre a terra...
Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?

Mario Quintana
In Esconderijos do Tempo


SINÔNIMOS



Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos
Perfeitos: “nunca” e “sempre”.

Mario Quintana
In: Na volta da Esquina