sexta-feira, 30 de maio de 2014

NOITE



Sozinha estou entre paredes brancas
Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas


Sophia de Mello Andresen
in Mar Novo

LUA


re a terra e os astros, flor intensa.
Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.

Sophia de Mello Andresen,
in Dia do mar - IV -1947

AS FONTES



Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei ate as fontes.

Irei até as fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004

NÉVOA




Que densa névoa cobre a terra inteira!
Dir-se-ia que pousou na terra o próprio céu ...
E lembra um andorinha prisioneira
Dum condor que sobre ela as asas estendeu.

Moldados pela noite à sua negra imagem,
Cismam meus olhos fundos como um rio.
Tornam mais densa ao longe a noite da paisagem
Os montes dum perfil ascético e sombrio.

E esqueço-me a pensar se tudo o que me envolve,
As árvores, os montes e os rochedos,
Não é um sonho só que em névoa se dissolve,
Como ao quebrar da luz, sombras, noturnos medos.

Tão ausente me sinto, tão distante,
Que um sonho me parece a própria vida;
A névoa cresce, aumenta a cada instante ...
E a minha sombra jaz na sombra confundida ...


Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas

O VENTO



Ó voz cheia de lágrimas! ó vento
Perdido na infinita soledade!
Eterno peregrino da saudade,
Eu compreendo bem teu sofrimento!

Ó voz cheia de lágrimas! Quem há de
Adivinhar a dor do teu lamento?
E quem descobre em ti um sentimento
E um coração na loca tempestade?

Ó voz cheia de lágrimas, lembrando
A Natureza inteira soluçando,
Alma penada a errar no céu profundo!

Quem sabe a dor do vento, as suas mágoas,
Quando adormece, à noite, sobre as águas,
Num silêncio que vem de além do mundo? ...


Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas


quinta-feira, 29 de maio de 2014

A ESTRELA



Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.


Manuel Bandeira
in Estrela da vida inteira.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

SAFRA



Como um viticultor ocioso come
em pleno outono, uma por uma, as uvas
do cacho que ele viu nascer, pesar,
sob os olhos do sol e o próprio olhar;
e em que, mais demorando o paladar
na espera aberta entre o prazer e a fome,
já reconhece o gosto bom das chuvas

lavando os fornos do verão distante;

e, como uma saudade só, o sabor
da terra presa às mãos grossas de suor
— assim viver a vida, instante a instante.

Geir Campos 
In Cantigas de Acordar Mulher (1964)




A Árvore



Ó árvore, quantos séculos levaste 
a aprender a lição que hoje me dizes: 
o equilíbrio, das flores às raízes, 
sugerindo harmonia onde há contraste? 

Como consegues evitar que uma haste 
e outra se batam, pondo cicatrizes 
inúteis sobre os membros infelizes? 
Quando as folhas e os frutos comungaste? 

Quantos séculos, árvore, de estudos 
e experiências — que o vigor consomem 
entre vigílias e cismares mudos — 

demoraste aprendendo o teu exemplo, 
no sossego da selva armada em templo? 
Dize: e não há esperança para o Homem? 


Geir Campos
In Rosa dos rumos (1950).

HAIKAI



A nuvem e o pássaro
passeiam acompanhados.
Cores. Primavera.

Delores Pires , 
in Estações

terça-feira, 27 de maio de 2014

ANUNCIAÇÃO


De pássaros cadentes como estrelas 
a amplidão de repente se povoa 
e cada qual é uma notícia boa 
da madrugada que vem vindo pelas

quebradas cordilheiras de uma espera 
tanto procrastinada quão doída 
entre pedaços de espelhos da vida 
onde já a hora clara reverbera;

e são asas mais asas convidando 
a crer nelas e a ir com elas quando 
ruflam assim tão rente ao nosso rosto, 

e ponto algum é perto ou longe, e há só 
por horizonte uma nuvem de pó 
que o sol espana ao retomar seu posto.


Geir Campos

segunda-feira, 26 de maio de 2014

HAICAI


Suave serena
a rosa saudando a vida
ao toque do vento.

Delores Pires 
In Estações


HAICAI



Manhã de neblina.
Do pinheiro exuberante
apenas um vulto...

Delores Pires

HAICAI


O vento assoprando.
Folhas verdes farfalhando
na tarde outonal.

Delores Pires ,
in Tapete de Folhas



HAICAI



Entre a paz do branco
o riso da margarida.
Ouro reluzindo.

Delores Pires ,
in Pétalas de Ipê


HAICAI



-"Façamos o inverno"?.
Disse Deus, e o minuano
escolheu o Sul...

Delores Pires
In Olhar à Janela

domingo, 25 de maio de 2014

MANHÃ NO MEU JARDIM



Ha festas nas campo, ânsias que crescem
Sob a cortina verde da ramagem,
Enquanto as samambaias estremecem
Aos beijos brandos da sublime aragem!

Uns retalhos de sol sobre a folhagem
Tremeluzindo, das alturas, descem
E no fundo azulado da paisagem,
De várias cores, um tapete tecem . . .

Ha mensagens de olências nos canteiros !
Chovem pétalas brancas, perfumadas,
Da fronde angelical dos jasmineiros . . .

E a manhã, como uma águia de marfim ,
Desce dos chapadões das madrugadas
E abre as asas de luz no meu jardim!


Miguel Jansen Filho
(Paraíba 1925/1994)

sábado, 24 de maio de 2014

MAGNÓLIA



Uma flor.
Uma cor
Acordada.
Uma vida feliz
Que o diz
Numa voz perfumada.

Miguel Torga


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A CHUVA CHOVE



A chuva chove mansamente ... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene ...
A chuva chove mansamente ... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine ...

E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono ...
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono ...

... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha ...
Paço de imensos corredores espectrais,

Onde murmurem velhos órgãos árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas 


OFÍCIO



Naturezas de borboleta
forjam casulos em silêncio.
Em segredo, universos tramam
O absoluto florescimento.

Tanta beleza em surdina
que já não se conta o tempo.

O ferreiro tece o concreto
em diurno alheamento.

Também meu ofício de arte
por estas vias se encorpa.
Tanta mobilidade, tantas formas
me saíram do bolso
assim como do nada
no mais desprovido silêncio.

Fernando Campanella

ETERNO OUTONO



Estou com a idade pousada nas mãos.
Explico-me com dedicação aos berços fundos
onde cada coisa dorme o seu medo de morrer.

Há na tristeza um perigo de terminar:
o eterno outono parece belo
a quem perdeu todas as sementes.

Pergunta-se um nome e ninguém responde.
Onde fica essa ilha a que só chegamos
 por naufrágio?


VASCO GATO,
 in IMO 


quinta-feira, 22 de maio de 2014

PINHEIRO



Pinheiro verde.Verde pinheiro,
de braços estendidos no azul.
Pinheiro de minha infância!
Infância que ficou lá longe...
a distância...
Pinheiro alto robusto.
Pinheiro bonito.
Pinheiro antes de tudo, pinheiro.
Pinheiro que me viu menino.
Menino travesso.
Pinheiro que me viu crescer.
Pinheiro que me dava bom pinhão.
Pinheiro que me acolhia em sua sombra,
quando eu voltava da escola,
no sol quente.
Pinheiro que me escondia
das gotas de chuva.
Pinheiro amigo, que me entendia.
Pinheiro branco de geada.
Pinheiro agitado pelo vento,
que me assanhava os cabelos.
Pinheiro alegre, pinheiro amigo.
Pinheiro de agulhas pontiagudas,
mas que não feriam.
Pinheiro do tempo que ficou lá atrás...
Pinheiro, companheiro de todas as horas.
Pinheiro, um pedacinho de mim...
Pinheiro que me enche de recordações...
Uma gota de saudade...

Delores Pires
In A Estrela e a Busca

sábado, 17 de maio de 2014

O CREPÚSCULO DA BELEZA



Vê-se no espelho; e vê, pela janela,
A dolorosa angústia vespertina:
Pálido, morre o sol... Mas, ai! termina
Outra tarde mais triste, dentro dela;

Outra queda mais funda lhe revela
O aço feroz, e o horror de outra ruína:
Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina,
Mais do que a vida, o orgulho de ser bela!

Fios de prata... Rugas... O desgosto
Enche-as de sombras, como a sufoca-la
Numa noite que aí vem... E no seu rosto

Uma lágrima trêmula resvala,
Trêmula, a cintilar, - como, ao sol posto,
Uma primeira estrela em céu de opala...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

BEIJA-FLOR



Pequenino feixe de nervos
lépido sutil e grácil
em torno da corola esvoaça
Beija-flor todo equilíbrio
no seu trapézio invisível.

Ao abrir o leque de plumas
com estrias de safira
Beija-flor arrisca o jogo
no assédio à flor.Mas recua
rápida flecha sem pouso
a um balouço de arbusto.

Dramazinho melífluo:
coração em conflito
de premência e cautela
Beija-flor investe a custo
e sem perder o galeio
gira oscila dança paira
não desiste mal se atreve
em galanteios e escusas
antes de colher o inseto
que entre pétalas se oculta.


Henriqueta Lisboa
In Pousada do Ser


EXCERTO LITERÁRIO



Hoje eu quereria estar no deserto amarelo, sem beduíno,
camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo
onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que 
não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor,
nem de pedra, nem de gente.
O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.
Hoje eu quereria ser esse vento!


Cecília Meireles,
in  Compensação 

EM LOUVOR AO FOGO



Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta
doçura da tarde.


Eugenio de Andrade
in Obscuro Domínio

terça-feira, 13 de maio de 2014

XXXI



É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...

E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!

Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:

Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine...

Mário Quintana ,
in A Rua dos Cataventos

segunda-feira, 12 de maio de 2014

FLOR DE UM DIA



gosto de imaginar-te
como capricho de um verão
qual pequenina estrela
que para meu dia refulge
e tão logo se esvaece -

ah, delicada surpresa
de que o mundo me existe
me acresce

Fernando Campanella


E AOS NINHOS RETORNAM...



Tarde de maio, sou o que vaga
(e as aves sonolentas retornam à casa)

Fernando Campanella


terça-feira, 6 de maio de 2014

E MAIS O TEMPO...




há em mim a natureza de um calcário
de catedrais adentro

dê-me todo oceano do mundo
e mais o tempo
e mais o tempo...

Fernando Campanella, 1989

HÃO DE LEMBRAR




o mar me ultrapassa
mas ondas haverão de contar
aos ouvidos que lá pousarem
que um dia sonhei no mar

o céu não vai se importar
quando eu de meu hábito partir
mas estrelas enquanto restarem
hão de lembrar
que um dia me puseram feliz

a terra , é fato, há de me subtrair
mas a árvore que me deitou raiz
e os frutos que em meu tempo colhi
estes eu levo comigo
ninguém há de tirá-los de mim

Fernando Campanella




ARCO DE CORES



Dobrei o labirinto
e lá ele estava,
assente, como um farol.
Não indaguei como
nem quis saber porquês.
Melhor que as belezas
aconteçam assim
- um engaste do tempo -
zênite em mim. 

Fernando Campanella


segunda-feira, 5 de maio de 2014

BEBÊ



Coisinha deficiente, inconsciente,
inerme, inválida, trabalhosa,
querida.

Mario Quintana,
in Caderno H


FRUTESCÊNCIA




Em solidão amadurece
a fruta arrebatada ao galho
antes que o sol amanhecesse.

Antes que os ventos a embalassem
ao murmurinho do arvoredo.
Antes que a lua a visitasse
de seus mundos altos e quedos.
Antes que as chuvas lhe tocassem
a tênue cútis a desejo.
Antes que o pássaro libasse
do palpitar de sua seiva
o sumo, no primeiro enlace.

Na solidão se experimenta
a fruta de ácido premida.

Mas ao longo de sua essência
já sem raiz e cerne e caule
perdura, por milagre, a senha.

Então na sombra ela adivinha
o sol que a transfigura em sol
a suaves pinceladas lentas.
E ouve o segredo desses bosques
em que se calaram os ventos.
E sonha invisíveis orvalhos
junto à epiderme calcinada.
E concebe a imagem da lua
dentro de sua própria alvura.
E aceita o pássaro sem pouso
que a ensina, doce, a ser mais doce.

Henriqueta Lisboa
in Além da Imagem

domingo, 4 de maio de 2014

OS GATOS




Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos


Manuel António Pina
in Como se desenha uma casa

quinta-feira, 1 de maio de 2014

CREPÚSCULO DE ABRIL



Longa pincelada de cinábrio, no poente,
sublinha os nimbos gris.

A púrpura veludosa do amaranto
veste os jardins do outono.

Dorme a névoa dos vales.
No coração transido, a noite desce.

Helena Kolody