quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

PARA O NATAL



Para o Natal reserve os mais belos
gestos,
a dança mais cristalina,
escolha uma estrela longínqua,
que ainda não tenha sido descoberta,
para enfeitar a festa.

Embrulhe palavras com luz
e oferte a quem ama:
não há presente mais certo.

E que caibam na mesa
os que já se foram,
os que ainda não chegaram
e os que enchem a casa de sol.

Para o Natal pinte as mãos
com sua cor preferida
e distribua beijos
como vagalumes
para lembrar o homem
que nesta hora, em algum lugar
distante no tempo,
transformava água em vinho
e multuplicava os peixes.

Roseana Murray,
do blog da autora

domingo, 15 de dezembro de 2013

VAZIO



Há certos dias
Que sinto em min’alma
Um vazio infinito,
Um vazio sem sentido,
Um vazio indefinível,
Vazio dos ventos e procelas,
Vazio que vem de longe
Cuja origem desconheço,
Maior,
Muito maior que a solidão...

Há certos momentos
Que sinto dentro de mim
Um vazio talvez originário das vagas,
Dos grandes mares
E que às vezes me inunda,
Quase me faz soçobrar...

Há certas horas
Que sinto dentro de mim
Um vazio que se agiganta,
Diante do qual me sinto pequenino
E comparo este vazio tão grande
Ao vazio da hora do adeus...

Mas existe,sim,
Um vazio,
Muito maior do que todos os vazios,
E que se alojam no âmago dos corações,
O vazio imenso da saudade!...

Olimpyades Guimarães Corrêa
Em Neblina do Tempo -1.996


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A LUA POR TRÁS DA TORRE



A lua por trás da torre
Faz a torre diferente.
A verdade, quando morre
Morre só porque não mente.

Mente a lua que se esconde
Por trás da torre de aqui,
Mente a torre porque é onde
A lua não está ali.

A lua é só um reflexo
A torre é um vulto somente,
E assim, num íntimo nexo,
Qualquer diz verdade e mente.

E é desta mista incerteza
De verdade e de mentira
Que nasce toda a beleza ―
Que desta hora se tira.

Saibamos, dando guarida
Ao que tudo é de metade,
Fazer bela a nossa vida
Mentindo com a verdade.

Fernando Pessoa, 
in Poesia




domingo, 8 de dezembro de 2013

CAVALGADA




Meu sangue corre como um rio
num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.

Pelas suas ondas revoltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrelas soltas,
com a máxima cintilação.

Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!



Cecilia Meireles,
in Viagem


DISTÂNCIAS PERDIDAS



Iluminados por luz que nasce na distância
E largados à vontade sem destino
Cavalgamos campos e relvados
Vazios de montes ou vales aguados.
A colheita de horizontes é farta
Mas inatingível para a fome de repouso.
No céu os mares sonolentos ou raivosos,
Na terra, do canto morto e irrevelado
Nascem braços como espigas ressecadas,
Na paisagem
Exuberante cresce a solidão
Sem deixar rastros da nossa passagem.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

sábado, 7 de dezembro de 2013

MISTÉRIO


Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por
mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu
nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.

Adalgisa Nery
In ‘Cantos da Angústia’ (1948)


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

VENTO



Às vezes ouço passar o vento;
e só de ouvir o vento passar,
vale a pena ter nascido.


Fernando Pessoa

domingo, 1 de dezembro de 2013

O CISNE



Este sacrifício de avançar
pelos feixes do irrealizado
lembra um cisne, altivo a caminhar.

E a morte ― esse nada mais buscar
do chão diariamente repisado ―
lembra a sua angústia de pousar

sobre as águas que o recebem mansas
e cedem sob ele, em suaves tranças
de marolas que cercá-lo vêm;
enquanto ele, calmo e independente,
segue sempre majestosamente
como ao seu próprio capricho lhe convém.


Rainer Maria Rilke
in Poemas. Trad. Geir Campos.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O ETERNO ESPANTO



Que haverá com a lua que sempre que a gente
a olha é com o súbito espanto da primeira vez?

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


terça-feira, 26 de novembro de 2013

ESSES DIAS CINZAS


Esses dias cinzas
não os passaremos em branco
mas em vermelho,laranja,amarelo,verde
e azul
nas tardes choveremos em lilás.

Chandal Meirelles Nasser

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

MANOEL DE BARROS



( ...)

" O mundo era um pedaço complicado para
o menino que viera da roça .
Não vi nenhuma coisa mais bonita na
cidade do que um passarinho .
Vi que tudo o que o homem fabrica
vira sucata : bicicleta , avião , automóvel .
Só o que não vira sucata é ave ,
rã , pedra .
Até nave espacial vira sucata .
Agora eu penso uma garça branca de brejo
ser mais linda que uma nave espacial .
Peço desculpas por cometer essa verdade ."


Manoel de Barros
in , " Memórias Inventadas "



quinta-feira, 21 de novembro de 2013

PARA QUE NUNCA MAIS ME RECONHEÇAM



Permaneço no lugar em que os relâmpagos
se incendeiam rente à montanha
e deixo que a terra me seduza.
Depois, posso descer o rio, exausta e frágil,
com o corpo embrulhado nas raízes das giestas
e a boca marcada pelo fogo,
como um sinal de alarme,
para que nunca mais me reconheçam.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

CANÇÃO PARA MUSICAR


Por que ficaram as árvores
tão sós e silentes que o vento parou?

Por que de súbito os pássaros
quedaram tão quietos que o luar se apagou?

Foi uma face de estrela
que uma água parada na mata espelhou

Foi a beleza do mundo
que na alma dos poetas, sonhando, cantou.



Tasso da Silveira
Poemas de Antes

domingo, 17 de novembro de 2013

FLAMBOYANTS


Eu não cantei ainda os flamboyants floridos,
alegres, majestosos, multicores,
que ,ao vir da primavera, embevecidos,
policromos, sensuais, adornam-se de flores.

E, enfileirados, vão, floridos e felizes,
balouçando a ramagem espontânea ,
como saudando a rir em rútilos matizes
as amplas avenidas de Goiânia.

E nas quentes manhãs de setembro e de outubro,
quando o vento lhes beija as franças, no alto,
sussuram , musicais, despetalando o rubro
véu de flores vermelhas pelo asfalto.



Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

AS PALMEIRAS



Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.


EUGéNIO DE ANDRADE
In Ofício de Paciência




quarta-feira, 13 de novembro de 2013

FELICIDADES



Pequenas felicidades
passeiam por nossos dias
como joaninhas na palma
da mão,
como um desenho de orquídea
trazido pelo vento.
Para não desperdiçá-las
há que estar sempre atento,
caminhar vagarosamente
pelos contornos da tarde,
encher os bolsos com a areia
dourada do tempo.

Roseana Murray,
in Rios da Alegria

terça-feira, 12 de novembro de 2013

HAICAI



Passarinhos voam
alegria em suas asas
num raio de sol


Roseana Murray,
in O Xale Azul da Sereia

HAICAI



Teia de aranha
fios de seda e luz
amarram o sol.

Roseana Murray,
in O Xale Azul da Sereia

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

TEOLOGAL



Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão à forma prima:
a rosa é mística.

Adélia Prado
In Oráculo de Maio

"SE EU FOSSE APENAS. . ."




Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!


Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!


Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
-de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa. . .


Cecilia Meireles
In: Retrato Natural





CANÇÃO QUASE TRISTE


 

Brilhou a rosa
No espinhoso galho.
Quem viu? Ninguém.

Nuvens muito altas
Lágrimas de orvalho
Deram-lhe: - de além.

Seca os teus olhos,
No amargo trabalho,
Que a noite já vem.

Vê-te a ti mesmo,
Sê teu agasalho,
Pobre Pero Sem.

Cecília Meireles
In Retrato Natural







A UM JOVEM POETA




Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.


Manuel António Pina,
in “Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança”

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

AS CONCHAS



Saberemos, um dia, como são frágeis.
Sabem de cor o casco dos navios.
Confundem-se com as mãos, na maré-baixa.
Pressentem o fim do verão
pelo morrer dos peixes no labirinto dos corais.
Entre âncoras e algas, navegam.
Tão leves, que o vento se perturba.

Graça Pires
De Labirintos, 1997





ROSA PLENA




Rosa plena. Em glória
de cor
de forma
de febre
de garbo.
Em auréola sobre si mesma
- estática.
Em arroubo diante da luz
- dinâmica.
Enrodilhada em aconchego de concha
buscando o núcleo.
Fugindo-lhe ao cerco
- asas aflantes flamejantes.

Rosa plena.
Turíbulo. Ostensório.
Convite à valsa dos ventos.
Tributo ao círculo - perfeição
de chegar e partir.
Cada pétala é um sonho de retorno.
E as pétalas se avolumam compactas
e esmaecidas logo se despejam
ao longo e ao largo
- no fascínio
do pretérito pelo devir.
Sangue em oblata
no altar maior.
Amor e morte
pela revelação.
Rosa plena.
Poesia
que se fez Carne

Henriqueta Lisboa
in: A Pousada do Ser


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CANTIGA



Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar. 



Manuel Bandeira
In:"Poesia reunida"

terça-feira, 5 de novembro de 2013

ESPECTROS




Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,


Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,


Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sois),


Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.


Cecília Meireles
In: Espectros (1919

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ESTA É A GRAÇA



Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?
Talvez a noite com nova estrela,
a pátina de ouro do tempo,
alguma cousa de precário 
assim como para o soldado a paz?

Com grave mistério de reposteiros
um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
do bulício das samambaias no horto.

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.

O mesmo silencio da madrugada
prenuncia, sem duvida, um evento
que já não é o grito da aurora
ao macular de sangue a túnica.

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas. 


Henriqueta Lisboa
In:'A Flor da Morte' (1945-1949)



domingo, 3 de novembro de 2013

AS ÁRVORES



Na celagem vermelha, que se banha
Da rutilante imolação do dia,
As árvores, ao longe, na montanha,
Retorcem-se espectrais à ventania.

Árvores negras, que visão estranha
Vol aterra? que horror vos arrepia?
Que pesadelo os troncos vos assanha,
Descabelando a vossa ramaria?

Tendes alma também... Amais o seio
Da terra; mas sonhais, como sonhamos,
Bracejais, como nós, no mesmo anseio...

Infelizes, no píncaro do monte,
(Ah! não ter asas!...) estendeis os ramos
À esperança e ao mistério do horizonte...

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)









sexta-feira, 1 de novembro de 2013

XV Para Érico Veríssimo



O dia abriu seu pára-sol bordado 
De nuvens e de verde ramaria. 
E estava até um fumo, que subia, 
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado. 

Depois surgiu, no céu azul arqueado, 
A Lua — a Lua! em pleno meio-dia. 
Na rua, um menininho que seguia 
Parou, ficou a olhá-la admirado... 

Pus meus sapatos na janela alta, 
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta 
Pra suportarem a existência rude! 

E eles sonham, imóveis, deslumbrados, 
Que são dois velhos barcos, encalhados 
Sobre a margem tranqüila de um açude... 


MARIO QUINTANA 
In A Rua dos Cataventos, 1940 







quinta-feira, 31 de outubro de 2013

AS CIGARRAS




Amei-as em silencio, ao fim de cada estio,
Na terrível pureza de seu longo Canto.
E quando a tarde vem, sempre a vestir o manto,
Elas zombam do tempo austero e fugidio.

Enquanto nuvens passam sobre a paz do rio,
Ficam todas cantando, com firmeza e encanto,
Deixando em cada folha um pouco de seu pranto,
Pois de dores é feito o seu fatal cicio.

As formigas, obreiras, sem saber cantar,
Jamais, na dura lida, poderão perdoar
Aquelas que valor não dão às provisões.

E elas, as cigarras, servas da beleza,
Elevam madrigais, louvando a natureza
E dando resplendor a todos os verões.

Artur Eduardo Benevides
In: Elegia Setentã e Outros Poemas de Entardecer

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

FORMIGA



A Pedro Schleder


É um minúsculo inseto: uma formiga.
Sem que ninguém lhe note a faina obscura,
vai construindo, elevando para a altura
o formigueiro – templo e lar – que a abriga.
No titânico heroísmo em que se apura,
não hesita, sequer. E não a instiga
o ardor da glória: nem a inveja e a intriga
incentivo lhe dão para a aventura.
Que alto exemplo de fé no próprio esforço!
Fosse um de nós, e, instante por instante,
do cansaço abatido à força bruta,
pararia, curvando a fronte e o dorso,
a perguntar, de angústia palpitante,
qual a razão de ser daquela luta...


Tasso da Silveira





MAR



Hoje estou como nunca sentindo o mar, o denso mar.
O mar, no seio de cujas solidões os continentes são
como pobres pranchas a que se agarram náufragos.
O mar ainda primitivo, primevo, fresco e verde na
hora em que o mundo se desfaz em poeira antiga.
O mar virginal e vivo, movendo em ritmo cósmico a
massa funda,
ignorando praias e cais, e o pobre humano tumulto,
e as torres e os faróis,
rolando a massa funda como se só ele existisse, e,
no céu, as estrelas,
e cantando o seu canto como se só as estrelas
devessem ouvi-lo,
porque é um canto de eternidade, de plenitude e de força,
como, além dele, só as estrelas sabem cantar
 no seu absoluto silêncio ...


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes






quinta-feira, 24 de outubro de 2013

POETA



"- Vai!
Corre o mundo
encostado 
a um bordão de esperanças!

Hão-de ferir-te os pés
as pedras dos caminhos.
Mas entenderás a conversa dos ninhos
e o riso das crianças."


Saúl Dias, in
O universo da Invenção 




quarta-feira, 23 de outubro de 2013

SOSSEGA, CORAÇÃO!



Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, silente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.


Fernando Pessoa
In Novas Poesias Inéditas

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

PERENIDADE



Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
Uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
Em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
Pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
O luxo eterno que ela te concede.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

AVENTURANÇA



Ver o mundo de baixo, como um céu
Onde se há-de subir;
Onde a vida nasceu
E onde tem, afinal, de se cumprir.

Erguer os olhos à divina altura
De uma leira de terra semeada;
À imensidão da lura
Onde cresce a ninhada.

Ver astros, tempestades, mitos,
Onde há luas, quimeras, ambições, desejos;
Onde há gritos
E beijos.


Miguel Torga
in ‘Libertação’

OS ANIMAIS



Vejo ao longe os meus dóceis animais. 
São altos e as suas crinas ardem. 
Correm à procura duma fonte, 
a púrpura farejam entre juncos quebrados. 

A própria sombra bebem devagar. 
De vez em quando erguem a cabeça. 
Olham de perfil, quase felizes 
de ser tão leve o ar. 

Encostam o focinho perto dos teus flancos, 
onde a erva do corpo é mais confusa, 
e como quem se aquece ao sol 
respiram lentamente, apaziguados. 

Eugénio de Andrade




HÁ DIAS



Há dias em que julgamos 
que todo o lixo do mundo 
nos cai em cima 
depois ao chegarmos à varanda avistamos 
as crianças correndo no molhe 
enquanto cantam 
não lhes sei o nome 
uma ou outra parece-se comigo 
quero eu dizer : 
com o que fui 
quando cheguei a ser luminosa 
presença da graça 
ou da alegria 
um sorriso abre-se então 
num verão antigo 
e dura 
dura ainda. 


Eugénio de Andrade


domingo, 20 de outubro de 2013

COMO SE A PEDRA



Escuto como se a pedra
cantasse. Como
se cantasse nas mãos do homem.
Um rumor de sangue ou ave
sobe no ar, canta com a pedra.
A pedra nas suas mãos
obscuras. Aquecida
com o seu calor de homem.
O seu ardor
de homem. Escuto
como se fora a minúscula
luz mortal que das entranhas
lhes subisse à garganta.
A sua mortalidade
de homem. Canta com a pedra.


Eugénio de Andrade








MANOEL DE BARROS



“Para encontrar o azul
eu uso pássaros”.

Manoel de Barros


PRIMAVERA E VIDA



Manhã alegre,
canto de cigarra,
sol colorido,
natureza em flor.
É primavera nas nuvens brancas,
no azul festivo.
Borboleta
perpassa o ar
perfumado.
Pousa
na árvore
revestida
de brotos verdes.
É primavera
lá fora,
no pássaro que voa
beijando a flor,
no inseto que zumbe,
nas folhas clorofiladas,
nas pessoas...
É primavera.
Alegria.
Vida...


Delores Pires
In A Estrela e a Busca

SILÊNCIO



"Só o silêncio faz rumor no voo das borboletas."

- Manoel de Barros, 
em "O fazedor de amanhecer"

sábado, 19 de outubro de 2013

ONDE ME LEVAS, RIO QUE CANTEI



Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.
Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.
Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.
Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca. 


Eugénio de Andrade






O ESCÂNDALO DA ROSA



Oh rosa que raivosa 
Assim carmesim 
Quem te fez zelosa 
O carme tão ruim? 

Que anjo ou que pássaro 
Roubou tua cor 
Que ventos passaram 
Sobre o teu pudor 

Coisa milagrosa 
De rosa de mate 
De bom para mim 

Rosa glamourosa? 
Oh rosa que escarlate: 
No mesmo jardim! 


VINÍCIUS DE MORAES 
In Livro de Sonetos, 1967 







sexta-feira, 18 de outubro de 2013

13



O canto dos pássaros, no seio da mata, é branco e fresco.
Lá longe, a cidade arfando
como um pulmão cansado.
Lá longe, ao sol, muros, palácios, Tôrres
são previamente poeira.
Lá longe, o amargor profundo.

O canto dos pássaros, no seio da mata, é puro e novo.

Recria a inocência do mundo.


Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes

12



Um passarinho canta
para o canto perder-se.

Para o canto fundir-se
no éter puro e sereno,
no silêncio das coisas,
no mistério dos seres.

Um passarinho canta
apenas porque é vida:
a vida é apenas canto,
canto efêmero.


Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes

'CÂNTICO DAS ÁGUAS'




Quem quiser cantar as águas, - as águas do
vasto mundo, - Mar há de, antes, cantar.
Antes das águas nascentes, antes das águas
tombantes, antes das águas correntes, antes das
águas dormentes, viva, no cântico, o Mar.
As águas de fonte fluem flébeis, frescas,
Fluidas, finas, como luz de amanhecer.
As águas das cachoeiras, plasma líquido se
escoando, pela “forma” das cachoeiras vão
passando, vão passando: são o ser e o vir-a-ser.
As águas correntes correm, correm, correm,
corem, correm, turvas, torvas, limpas, claras, -
mas seu destino é parar:
depois de correrem tanto, num ímpeto ou num
quebrando, murmurantes ou silentes, vão se diluir
no Mar.
As águas dormentes dormem, as águas dormentes
sonham, as águas dormentes, fundas, dão
vontade de morrer:
as águas dormentes, fundas, dão saudades do
não ser.
Quem quiser cantar as águas, as águas do mundo
vasto, há de o Mar, antes, cantar:
antes das águas nascentes, antes das águas
tombantes, antes das águas correntes, antes das
águas dormentes, - viva, no Cântico, o Mar.
Porque o Mar é sempre novo, sempre virgem,
sempre em “fiat”, e sempre trágico e antigo, e em
plenitude de ser:
só êle o céu todo espelha, só ele o espírito
espelha, só ele ao homem semelha, - só ele canta
a sofrer . . .


Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes  

ATLÂNTICO





Este mar largo e longo, e denso e fundo,
venho-o singrando desde o instante grave
em que o avô marinheiro, em frágil nave,
se foi por ele a descobrir o Mundo.

Este mar me tornou mais bela e suave
a vida, e o sentimento mais profundo.
Nele encontrei do meu mistério a chave.
Todo o meu longo canto é dele oriundo.

Agora os ventos vivos da alegria
tombaram. Sobre as ondas, lenta e fria,
se estende a noite. E já meus olhos cegam.

Mas pela equória vastidão plangente,
à procura do porto inexistente,
meu desejo e meu sonho ainda navegam.

Tasso Da Silveira
Poemas De Antes

FONTE




A fonte pura e antiga
à sombra longa dos sicômoros,
que um dia comoveu a alma surpresa,
é fonte de consolo
ao que de longe a evoca e em sonho a vive
quando se alonga a sombra da tristeza.


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

XI



O pássaro
conhece o horizonte.
A redondez
da terra.
E a primavera que anuncia
no canto solitário.
E na espera.

O pássaro não sabe
que eu sei, solitário,
atrás da vidraça
estas coisas que ele sabe.

Mas o pássaro
sabe de coisas
que nunca saberei
atrás das vidraças.


Lindolf Bell
In Código das águas