sexta-feira, 31 de maio de 2013

OLHOS DE GATO



Nos olhos do gato
veleiros deslizam perdidos:
aí, numa noite de lua nova,
embarcaram poetas
com casacos de miçangas
em busca de uma palavra,
um eco, um acorde, um sopro azul.

Roseana Murray,
in Poemas para ler na escola

quinta-feira, 30 de maio de 2013

DE REPENTE



De repente, do bolso,
caiu-me o poema.
Um poema não escrito.
Que me lembrava um pássaro em vôo
para o azul mais inocente.
Um poema simples.
O poema mais puro.
Penoso era vê-lo assim,
pássaro branco, e cego,
sequioso de azul. 

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

segunda-feira, 27 de maio de 2013

ASTROLOGIA



Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...

- Meu Deus, o que é que esse menino tem?
já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...

Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.


Mario Quintana
In Baú de Espantos

sábado, 25 de maio de 2013

O POÇO



Com minhas frágeis
e frias mãos
Cavei um poço
no fundo do horto
da solidão
Cavei um poço
mas bem profundo
com minhas mãos.

- Henriqueta Lisboa,
 in "A face lívida"



quinta-feira, 23 de maio de 2013

XADREZ



É branca a gata gatinha
É branca como farinha.
É preto o gato gatão
É preto como o carvão.
E os filhos, gatos gatinhos,
São todos aos quadradinhos.
Os quadradinhos branquinhos
Fazem lembrar mãe gatinha
Que é branca como a farinha.
Os quadradinhos pretinhos
Fazem lembrar pai gatão
Que é preto como carvão
Se é branca a gata gatinha
E é preto o gato gatão,
Como é que são os gatinhos?
Os gatinhos eles são,
São todos aos quadradinhos.

Sidónio Muralha

quarta-feira, 22 de maio de 2013

PEQUENAS COISAS



Falar do trigo e não dizer
o joio.Percorrer
em vôo raso os campos
sem pousar
os pés no chão.Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema.Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível .Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo.Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites.Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.

Albano Martins
In Escrito a Vermelho

terça-feira, 21 de maio de 2013

CAIO FERNANDO ABREU


Depois apareceu uma borboleta negra, 
laranja e azul esvoaçando sem rumo e alguém disse
 que elas viviam apenas vinte e quatro horas,
 que não precisavam trabalhar nem montar um lar,
 o lar eram as flores onde iam pousando descuidadas,
 depositando seus ovos, e os filhos que se virassem
 sozinhos. Mas antes alguém lembrou, ou ninguém,
 talvez todos tenham pensado sem dizer, antes foram
 crisálida, larva lenta, feia, cascuda, escura,
 fechada sobre si mesma, elaborando em silêncio e 
desbeleza as asas de mais tarde.


Caio Fernando Abreu


sábado, 18 de maio de 2013

PEREGRINOS



Lá vão os peregrinos, os loucos,
passo por passo
em busca do possível: 
um pouco de água clara 
no oco das mãos,
um fio prateado de lua
para costurar os sonhos,
uma toalha feita com o brilho
de todos os olhos
para forrar a mesa
onde se comerá
o fruto permitido.


Roseana Murray,
in Rios da Alegria

sexta-feira, 17 de maio de 2013

NINFÉIAS



Eu vou aonde as nuvens
de impossíveis tons se embriagam,
eu nado onde aquáticos leques
se irisam em sonhos
e por arte do encanto se dissolvem.

Eu furto cores,
clico roxos que se miram
em espelhos que me expandem.

Bebo a luz, traço a alma,
eu sou o impressionista ambulante.

Então nem me perguntes
por quais cambiantes geografias me espalho:
meus olhos são câmeras mimadas
meus pincéis são artífices do instante.


Fernando Campanella

quinta-feira, 16 de maio de 2013

PORTO PARADO



No movimento
lento
das barcaças
amarradas
o dia
sonolento
vai inventando as variações das nuvens...

Mario Quintana
In A cor do Invisível

terça-feira, 14 de maio de 2013

HELENA KOLODY



Estou sempre em viagem.
O mundo é a paisagem
que me atinge de passagem


Helena Kolody,
in Viagem Submersa

sexta-feira, 10 de maio de 2013

MÃE E FILHA



Nunca a severidade traçou tão firme a boca
e presença completa.
Balbuciam carícias
no limiar,
tropeçam palavras.
Seguem os olhos
prumos na tarde e traços nas nuvens:
semelhanças, vagar,
em matéria trêmula de amor sem confidência,
juntos, a sós.


Dora Ferreira da Silva
Poesia Reunida

quinta-feira, 9 de maio de 2013

O ENCONTRO



Subitamente
na esquina do poema, duas rimas
olham-se, atônitas, comovidas,
como duas irmãs desconhecidas...


Mario Quintana
In Baú de Espantos


terça-feira, 7 de maio de 2013

PRAZO DE VIDA



No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio.

Mandei armar o meu navio.
Volveremos ao mar profundo,
meu navio!

No meio das águas faz frio.
Faz frio no meio das águas,
muito frio.

Marinheiro serei sombrio,
por minha provisão de mágoas.
Tão sombrio!

No meio da vida faz frio,
faz frio no meio da vida.
Muito frio.

O universo ficou vazio,
porque a mão do amor foi partida
no vazio.


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas

sexta-feira, 3 de maio de 2013

PEQUENO POEMA DE APÓS CHUVA



Frescor agradecido de capim molhado
Como alguém que chorou
E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada
alegria
Por ter a vida
continuado...

Mario Quintana
In Baú de Espantos

quinta-feira, 2 de maio de 2013

POEMA AOS CAMINHOS DO MAR



É nos caminhos do mar, na estrutura mutante
do seu programa de memórias, de murmúrios

é no testemunho da transparência das águas
na sua dimensão ecuménica, admirável
de unir o sangue e os bálsamos apetecíveis

que nos banhamos numa vertigem de ludíbrios
trazendo as neblinas e o cheiro forte da luz
de meridianos horizontes, uma voz bilingue
para as apetências da plenitude, do equilíbrio
instável da nossa instante tranquilidade.

E é pelo mar que nos vinculamos à terra
que entendemos o cheiro acre da terra
e seus crisântemos repletos de inocências
para o reanimar do nosso berço anfíbio
a praia onde havemos de viver e morrer.

Vieira Calado

PAULO LEMINSKI


a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece

Paulo Leminski,
in Toda Poesia

PAULO LEMINSKI



beija
flor
na chuva

gota
alguma
derruba


Paulo Leminski,
in Toda Poesia

quarta-feira, 1 de maio de 2013

SOLIDÃO



Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.
Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrêlas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.


Cecília Meireles 
in "Poesia Completas"