quinta-feira, 31 de julho de 2014

A VIDA



Na água do rio que procura o mar;
No mar sem fim; na luz que nos encanta;
Na montanha que aos ares se levanta;
No céu sem raias que deslumbra o olhar;

No astro maior, na mais humilde planta;
Na voz do vento, no clarão solar;
No inseto vil, no tronco secular,
— A vida universal palpita e canta!

Vive até, no seu sono, a pedra bruta...
Tudo vive! E, alta noite, na mudez
De tudo, – essa harmonia que se escuta

Correndo os ares, na amplidão perdida,
Essa música doce, é a voz, talvez,
Da alma de tudo, celebrando a Vida!


Olavo Bilac



quarta-feira, 30 de julho de 2014

SOLIDÃO




Estás todo em ti, mar, e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


Juan Ramón Jiménez, 
in "Diario de Un Poeta Reciencasado"

HAICAI



Em cima do morro
araucária solitária
pedindo socorro.


Delores Pires
Pétalas de Ipê (2002)

CANÇÃO



Fonte, não beberei de tua água
(À sombra pura
tenho o meu cântaro fresco)
Não beberei de tua água,
mas ouvirei teu canto.
Ouvi-lo-ei com os ouvidos
do teu mistério eterno.
Teu canto é antigo e amanhecente.
É caos e gênese.
E é como o canto
do rouxinol que cantou cem anos,
e o monge ficou escutando em êxtase,
ficou escutando, escutando,
ficou escutando ...


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes

terça-feira, 29 de julho de 2014

XXXII



Somos aves do mar, batendo, ansiadas,
as asas, num viveiro de pomar.
Em torno, ao vento, agitam-se as ramadas:
ao vento vivo que nasceu do mar. 

Ah, que nunca dobramos resignadas,
as asas, nem deixemos de sonhar.
O vento vem em trêmulas lufadas;
e no canto do vento vem o mar ...

Se entre as formas efêmeras nascemos
foi para que a alma eterna que trouxemos
em si mesma realiza, a soluçar,

a absoluta beleza, à nostalgia
das origens divinas a que um dia
retornaremos, como para o mar ...


Tasso da Silveira
in Poemas

segunda-feira, 28 de julho de 2014

AVE



"Seu rosto tinha um lado de ave. 
Por isso ele podia conhecer todos os pássaros 
do mundo pelo coração de seus cantos." 

Manoel de Barros,
in Aprendimentos 

sábado, 26 de julho de 2014

ÁRVORE



Eu te fui como uma árvore possante,
a cuja sombra vieste repousar.
Ardia o sol ... Pelo caminho adiante
onde teu débil corpo resguardar?

Dei-te, em sombra e perfume, nesse instante,
toda a minha alma ... E a minha fronde, no ar
era um aberto pálio verdejante
para te proteger e te salvar ...

Mas que bom de velar sobre a fraqueza
de alguém que, ingênua e simples, de surpresa,
a nós, confiante, e pura, se entregou ...

Ah! Nem senti a ventania doida
que passou ululando e quase toda
minha verde folhagem despencou ...


Tasso da Silveira
in Poemas


sexta-feira, 25 de julho de 2014

LEGENDA DA VIDA E DO SONHO




No meu fogão pobre não ardia uma brasa,
do meu teto humilde não pendia uma lâmpada,
nenhuma estampa sorria nas paredes nuas do meu 
tugúrio.

Então, eu saí para a noite,
que estava toda iluminada !


Tasso da Silveira
Canções a Curitiba
& outros poemas

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A FUGA DO TEMPO




Na origem perdida de todas as coisas
foi que, para os olhos da Terra-menina
a ronda infinita começou:

a ronda infinita dos dias e noites! ...

Os dias cobertos de sedas e jóias,
as noites trazendo guirlandas de estrelas
entrelaçadas nos seios nus.
Os dias cantando cantigas frescas
cada um num ritmo diferente;

as noites cantando profundas baladas
cada uma em toada diferente;
os dias e as noites de mãos dadas
correndo na ponta dos pés nus ...

Na origem perdida de todas as coisas
foi que a ciranda começou ...

e a Terra, encantada, quedou-se olhando, 
ficou perdida no sonho suave,
e nem sentiu, não reparou
que, enquanto a ronda ia passando,
o pássaro de ouro
que ela aprisionara
voou para longe, longe, 
e não voltou ...



Tasso da Silveira
in Poemas


quarta-feira, 23 de julho de 2014

MAR E VENTO



Mar e vento. É o que somos. Mar, com
profundidades abissais, com tormentas, e com a 
infinita inquietação prisioneira. Vento, com ânsia
e o destino da liberdade igualmente infinita.
Mar e vento não seriam completos, um sem o
outro. A realidade que na vasta natureza tanto
nos comove não é apenas o mar, ou o vento.
É o vento fundindo-se no mar. As ondas são
vento liquefeito, e o vôo do vento é uma medida
das solidões do mar.
Na vasta natureza, e na vastidão do que somos,
o que nasce desse encontro é a cantiga. O vento
e o mar fundindo-se numa queixa única, e infinita.
A cantiga é sempre queixa, e sempre queixa infinita.
Mesmo se fala de deslumbramento.


Tasso da Silveira
in Poema de Antes


terça-feira, 22 de julho de 2014

7




À Vida abriu o viveiro,
sem fazer conta de mim,
e dele, em fervido arranco,
fugiu o pássaro branco
para longe do jardim.
Que posso fazer agora?
Apenas, ficar cismando,
apenas ficar chorando,
bem no silêncio de mim,

a olhar esta branca ausência
no viveiro do jardim.


Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes


9




Ah, ser o tigre elástico
que salta, brusco da brenha
para a clareira da floresta,
e olha em torno, absoluto,
o mundo, vasto e seu.

Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes

CARICATURA



A terra-mendiga escondeu-se num canto de 
sombra
para espiar,
através da janela da noite,
as estrelas dançando a sua prodigiosa dança lenta
no salão alto do Infinito.

Entre espelhos profundos, 
sobre veludos raros,
as estrelas dançam em êxtase.

E esqueceram-se de tudo
e embebedaram-se
do ritmo sereníssimo ...

E a Terra, despercebida e humilde,
tomou-se também
da encantada volúpia.

E arrepanhando o vestido roto de gaze que lhe deram,
e em que ainda brilham vidrilhos,
pôs-se a imitar, na sombra,
os movimentos harmoniosos
do bailado divino.


Tasso da Silveira
in Poemas

A FLOR E A FONTE



"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar."

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!"

As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor....


Vicente de Carvalho
 - 'Rosa, Rosa de amor',  1902

segunda-feira, 21 de julho de 2014

MANHÃ DE INVERNO



Coroada de névoas, surge a aurora 
Por detrás das montanhas do oriente; 
Vê-se um resto de sono e de preguiça, 
Nos olhos da fantástica indolente. 

Névoas enchem de um lado e de outro os morros 
Tristes como sinceras sepulturas, 
Essas que têm por simples ornamento 
Puras capelas, lágrimas mais puras. 

A custo rompe o sol; a custo invade 
O espaço todo branco; e a luz brilhante 
Fulge através do espesso nevoeiro, 
Como através de um véu fulge o diamante. 

Vento frio, mas brando, agita as folhas 
Das laranjeiras úmidas da chuva; 
Erma de flores, curva a planta o colo, 
E o chão recebe o pranto da viúva. 

Gelo não cobre o dorso das montanhas, 
Nem enche as folhas trêmulas a neve; 
Galhardo moço, o inverno deste clima 
Na verde palma a sua história escreve. 

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço 
As névoas da manhã; já pelos montes 
Vão subindo as que encheram todo o vale; 
Já se vão descobrindo os horizontes. 

Sobe de todo o pano; eis aparece 
Da natureza o esplêndido cenário; 
Tudo ali preparou co’os sábios olhos 
A suprema ciência do empresário. 

Canta a orquestra dos pássaros no mato 
A sinfonia alpestre, — a voz serena 
Acordo os ecos tímidos do vale; 
E a divina comédia invade a cena.

Machado de Assis,
in   'Falenas'

 

OS AMIGOS



Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.


Eugénio de Andrade.
in "Coração do Dia"


sábado, 19 de julho de 2014

NARCISO E O CÉU


 
Este céu de ouro nítido,
mirando-se na água sereníssima,
é Narciso.
Narciso, que se despercebia das coisas todas em torno,
das montanhas imóveis na líquida faiscação da luz macia,
das árvores em balouços esquecidos e lentos,
nas ninfas ágeis e frescas como frêmitos de alvorada
na tarde mansa,
das coisas todas que, no entanto, se saturavam da graça
pura do seu corpo,
- porque a alma inteira se lhe fundia no êxtase da sua
própria beleza refletida.

Narciso, que era,
na harmoniosa alma helênica,
uma adivinhação comovida
do Ser infinito e absoluto
que eternamente se contempla a si mesmo.


Tasso da Silveira
in Poemas

A MONTANHA




A seda do céu começou a manchar-se de sombra,
e o cristal do ar sereno
embaciou-se de sombra
e com o silêncio profundo
a noite, imensa, desceu.

E junto a mim, sob o céu morto,
ficou apenas este vulto de montanha
enchendo o mundo ...


Tasso da Silveira
in Poemas

sexta-feira, 18 de julho de 2014

OS ELEFANTES



Os brancos elefantes
vão passando, passando, vão passando.

(Não foi ao funda da planície milenária
do velhíssimo Oriente:
foi não fundo do sonho).

Em passadas tranquilas e passantes,
na estrada morta, a areia humílima pisando.

(não foi no mundo efêmero:
foi num conto de Kipling)

os brancos elefantes
imortalmente vão passando ...


Tasso da Silveira
in Poemas de antes

BALADA DE HEMINGWAY




O mar era pleno e puro.
ao fundo, a grande presença.
Em torno ao barco oscilante,
a infinita solitude
das águas, do céu, do vento.
O mar era pleno e puro,
em torno a pura beleza
no barco o desejo e o sonho
do lidador extenuado
sentindo a presença enorme
ao fim da linha retesa.
O mar era pleno e puro.
Hemingway, que a dor me deixe
cantar a balada triste
teu velho, teu mar, teu peixe:
sim, que me deixe cantar.
O mar era puro e pleno:
era todo o imenso mar...


Tasso da Silveira
in Poemas de Antes


quinta-feira, 17 de julho de 2014

FOLHA MURCHA



Para o fruto tende a flor,
para a tarde o amanhecer:
nada é eterno na terra
- salvo o mudar e o des-ser.
 
Mesmo o mais belo verão
há de em outono murchar
tem paciência, folha, espera
vir o vento te buscar!
 
Faz teu papel sem teimar
suceda o que suceder,
deixa o vento te arrancar
e em tua casa te deixar.
 
Hermann Hesse
in  Andares

terça-feira, 15 de julho de 2014

POEMA DE AMOR



Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno 
E quase ia morrendo com o receio de que ele 
não te coubesse no dedo.

Jorge de Sousa Braga,
in O Poeta Nu

sábado, 12 de julho de 2014

AZUL



Tropeçou no sol da manhã
e mergulhou no azul do outono.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho 

COMO OS ANOS




aquelas gotas de chuva
nas folhas
pesam, pesam...

e se tornam leves
quando não são mais tempo

e

caem


Fernando Campanella


sexta-feira, 11 de julho de 2014

DA CERTIDÃO DE NASCER




Nasci onde?
Nasci onde a geografia se faz de sentimento
Ali nasço
Ali nasço ainda.
Cada manhã.
Em cada manhã de medo.
Arremedo.
Degredo a degredo.
Em cada impulso, incompetência.
Na eterna e suave ironia do destino
de mais sentir que saber.
De saber
apenas sei
de quantas palavras
se faz a canoa de afetos.
Embora caminhe torto
por sonhos retos.
Muito aprendi
da palavra engolida em seco.
E da palavra abatida
por palavras de equívoco
e sutis alvenarias de cinismo.
Permaneço aqui
mesmo assim.
Nasço onde a geografia se faz de sentimento.
Entre princípio e fim de mundo.
Aurora a aurora.
Segundo a segundo.


Lindolf Bell,
in O Código das Águas

NÃO ESTÃO



Os pássaros não estão,
se esconderam no meu coração.

Hoje sou ninho.

Humberto Ak'abal, 
In Tecedor de Palavras


O SOL



O sol
penetra
entre os telhados.

com essa obstinação
de olhar 
o que há
dentro de nossas casinhas,

e fica pálido 
ao ver 
que com sua luz
é mais clara
a nossa pobreza.


Humberto Ak'abal, 
In Tecedor de Palavras

quinta-feira, 10 de julho de 2014

HORA PLENA



Hora plena, a do meio-dia.
As figuras não projetam sombras.
A luz incide, vertical, nas criaturas.

Hora total em que o ser atinge
a plenitude.

Helena Kolody
in Correnteza

PEREIRA EM FLOR


De grinalda branca,
Toda vestida de luar,
A pereira sonha.

Helena Kolody
In ‘Luz 


terça-feira, 8 de julho de 2014

SEMPRE MADRUGADA



Para quem viaja ao encontro do sol,
é sempre madrugada.


Helena Kolody
in Correnteza

segunda-feira, 7 de julho de 2014

PINGO DE CHUVA



O que penso,
o que digo,
o que sou ...
Pingo de chuva no mar.

Helena Kolody
in Correnteza

sábado, 5 de julho de 2014

LEVEZA



Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garaganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles,
in Antologia Poética


quinta-feira, 3 de julho de 2014

INSTANTE



O vento harpejava,
pianíssimo,
nos fios telegráficos.
A tênue onda sonora
vibrava na luz do dia.
Abelhas de sol zumbindo na tarde quieta.


Helena Kolody
in ‘Luz Infinita’


SOMBRA NO MURO



Persigo um pássaro
e alcanço, apenas,
no muro,
a sombra de um vôo.


Helena Kolody
in ‘Luz Infinita’

NOMES



Nomes com cheiro de mato:
corticeira,
guajuvira,
aroeira,
manacá.

Helena Kolody
in ‘Sinfonia da Vida’

COSMO



Na catedral constelada,
sobem leves nebulosas,
do turíbulo da noite.

Ondas incansáveis
de espaço-tempo
se quebraram, em silêncio, aos pés de Deus.


Helena Kolody
in ‘Luz Infinita’

FIO D’ÁGUA



Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.

Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura na mata silenciosa.


Helena Kolody
In ‘Luz Infinita’

DESTINO




Ai!
Ser como as densas florestas escuras
Que tecem filigranas vegetais
E em segredo se adornam para a festa da luz.

Ser como as densas florestas sombrias,
Que um raio de sol jamais penetrou.


Helena Kolody
In ‘Luz Infinita’

ALEGRIAS




As alegrias passam por mim
Qual um sonoro bando de aves brancas
Por sobre o espelho do mar.

A superfície vibra de inquietas imagens.
Mas, a profundidade é sempre a mesma,
Sempre a mesma,
E é eternamente a mesma direção das vagas.


Helena Kolody
In ‘Luz Infinita’

CRIANÇA



Trazes ainda uma luz transcendente no olhar
E o vestígio das mãos divinas em teu ser.

Não falas porque Deus está tão próximo
Que Sua presença impede-te falar.

Helena Kolody
In ‘Luz Infinita’




ARCO-ÍRIS




Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
que há pouco chorou.


Helena Kolody
In ‘Luz Infinita’

quarta-feira, 2 de julho de 2014

POEMA DO NOME PERDIDO




Como é teu nome, ó amiga estrangeira,
como é teu nome, ó rosto branco,
madona de tranças tristes, rio de ouro que um vento frisa?


Onde está o teu nome, dentro de mim, que não o encontro?
Acho tuas mãos tão finas, teus olhos verdes,
teu silencio delicado...
Mas teu nome onde está?


Deves começar por A, tão clara tão nítida,
tão perdida...
água...Oh!... Ar... Dize, como te chamas?


Quero escrever-te, e conheço-te,
e não me lembro do teu nome...
Alba... Aurora... Asa... Aragem...


Como te chamas? E por que não me lembro,
lembrando-te tanto, querendo-te tanto?
Decerto, o que estimo em ti não tem nome nenhum.
Nem mesmo o teu.


Mas o teu qual é, ó amiga que assim te escondes?

Cigarra na folhagem, sussurra para que te encontre!

Amália! Amália!


Ó exata, ó fiel, ó geométrica,
é dona das cores matutinas, dos barcos brancos,
das janelas fechadas ao crepusculo!...

Quem separa dentro de mim teu rosto do teu nome?

E procurei-o letra por letra,
como em noite escura se adivinha uma flor,
tocando pétala por pétala.

E eras inúmera! Amália, Amália...

Dália . 



Cecília Meireles
Poesia Completa
In: Dispersos (1918 – 1964)

CREPUSCULAR



A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a 
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco das ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

Nuno Júdice
IN Luz & sombra