sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

POEMA DO NATAL



PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
em O Operário em Construção e Outros Poemas

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

MERGULHO



Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.

Helena Kolody,
de Sempre Palavra

NATAL DE 1971



Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge De Sena
In Versos e Alguma Prosa

CITAÇÃO




"A infelicidade tem isto de bom:
faz-nos conhecer os verdadeiros amigos."

Honoré de Balzac

domingo, 16 de dezembro de 2012

ESTIVAL



Entre uma data e outra
a leitura dos gregos. Eles
sabiam-no. Por isso
me comove a visão
da primeira vinha.
O vinho bebo-o, cor de cravo,
em mesa de granito
por entre a espiral das cepas,
aroma acidulado rescendendo
ao paladar da aurora.
De olhos na terra.
Este é o seu sangue.

Rui Knopfli

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

FRONTEIRA



De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente; doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo com os olha e os consente.

O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.

Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.

Miguel Torga

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

BRASIL




Pátria de imigração.
É num poema que te posso ter...
A terra - possessiva inspiração;
E os rios - como versos a correr.

Achada na longínqua meninice,
Perdida na perdida juventude,
Guardei-te como podia:
na doce quietude
Da força represada da poesia.

E assim consigo ver-te
Como te sinto:
Na doirada moldura de lembrança,
O retrato da pura imensidade
A que dei a possível semelhança
Com palavras e rimas de saudade.

Miguel Torga

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

"FELICIDADES"




Pequenas felicidades
passeiam por nossos dias
como joaninhas na palma
da mão,
como um desenho de orquídea
trazido pelo vento.
Para não desperdiçá-las
há que estar sempre atento,
caminhar vagarosamente
pelos contornos da tarde,
encher os bolsos com a areia
dourada do tempo.

Roseana Murray
In Poemas para ler na escola

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

CITAÇÃO



"A natureza não faz nada em vão."

Aristóteles

domingo, 9 de dezembro de 2012

" TOADA"



As folhas se amontoam
no canto do muro.

Os anos se amontoam
no canto da vida.

Vida afora, amontôo
desafinações
em grandes toadas.

Só...

Quero uma toalha úmida,
como telhas depois da chuva.
E fria, como bonecos de neve.

Para, às quedas,
cobrir meu desespero
inteiro e nu.
 

 Jairo De Britto, 
em "Dunas de Marfim"

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

TRIBUNAL



Somos nós os culpados do que somos.
E é de mim que me queixo.
Tão intensa foi sempre a minha voz,
Que ninguém a entendeu.
Por isso, quanto mais água pedi,
Mais distante me vi
De cada fonte que me apeteceu.

E agora é tarde, já nem sede tenho.
Ou tenho-a como os cactos:
Eriçada de espinhos.
Olho de longe a bica tentadora,
Adivinho-lhe o gosto e a frescura,
E é de borco na areia abrasadora
Que refresco a secura.

Miguel Torga
in Obra Completa

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A CASA DO TEMPO PERDIDO




" Bati no portão do tempo perdido,
ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma .

A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém,
e eu batendo e chamando pela dor de chamar 
e não ser escutado.

Simplesmente bater.
O eco devolve minha ânsia de entreabrir 
esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater .


O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado."


Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

QUEIXA



Vida!
Que te pedi a mais
Que um mortal não mereça?
Ou queres que nenhum filho
Conheça
A plenitude?
Pude
O que me consentiste.
Mas vou triste
Do mundo.
Cavei,
Cavei,
E abri um poço sem chegar ao fundo.


Miguel Torga
in Obra completa

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

CÂNTICO




Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora

Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.


Miguel Torga
in Obra Completa

domingo, 2 de dezembro de 2012

ALEGRIA




Há alegria no sol que num triunfal rompante
como um broto de luz que rompesse as entranhas
da terra, - surge além pelas sombras, distante,
a incendiar como um louco a encosta das montanhas!

Há alegria no mar onde as conchas apanhas!
Na noite mansa e azul, silenciosa e brilhante,
e nas nuvens que no ar tomam formas estranhas,
nas mãos ágeis do vento irrequieto e inconstante!

Há alegria nas ruas, nas flores, - nas aves
que enchem ramos e céus de melodias suaves,
e em meus olhos tristonhos refletindo os teus...

Alegria não há, no entanto, mais completa
que essa que canta e ri no coração de um Poeta
quando ao findar de um poema se imagina Deus!


JG de Araujo Jorge
in "Amo!' (1938)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

VIAJAR...



...
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem
e a terra.O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra,
a noite e a luz,os astros, as águas, os peixes e a treva,
os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário
daquilo que era nómada;sabe que o homem não foi feito para
ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.

Al berto
em O Anjo Mudo

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

GOETHE



'A vida é a infância de nossa imortalidade.'

Goethe

terça-feira, 27 de novembro de 2012

PURO CANTO



Bendito o que ideou o primeiro jardim do mundo
E benditas as mãos inumeráveis
Que multiplicaram os jardins do mundo.
Os jardins, filhos da natureza e do espírito.
Os jardins, em que as arvores insignificativas da floresta

Tomam posturas humaníssimas
De melancolia e de êxtase.
Em que as águas insignificativas da Planície
Se transmudam em canais sonhadores.
Em que os rudes caminhos do vale e da montanha
Se geometrizam em curvas que são como os serenos pensamentos.

Bendito o que ideou o primeiro jardim do mundo
E os que semearam pelo mundo
As manchas de sombra fresca e de beleza
dos jardins inumeráveis...

Tasso da Silveira 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

CONQUISTA



Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!


Miguel Torga,
in 'Cântico do Homem'

domingo, 25 de novembro de 2012

ESTOU CANSADO




Estou cansado, é claro, 
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. 
De que estou cansado, não sei: 
De nada me serviria sabê-lo, 
Pois o cansaço fica na mesma. 
A ferida dói como dói 
E não em função da causa que a produziu. 
Sim, estou cansado, 
E um pouco sorridente 
De o cansaço ser só isto — 
Uma vontade de sono no corpo, 
Um desejo de não pensar na alma, 
E por cima de tudo uma transparência lúcida 
Do entendimento retrospectivo... 
E a luxúria única de não ter já esperanças? 
Sou inteligente; eis tudo. 
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, 
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, 
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
... 

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa),
 in "Poemas" 

sábado, 24 de novembro de 2012

JOSÉ LUIS PEIXOTO


...

"quando nasci. esperava que a vida.
me trouxesse. a terra. quando nasci.
esperava que a vida. me trouxesse.
as árvores. e os pássaros. e as crianças.
quando nasci. tinha o mundo. todo.
depois dos olhos. depois dos dedos.
e não percebi. não percebi. nada.
nunca imaginei. quando nasci. que a vida.
quando nasci. já era a escuridão. a escuridão.
em que estava. quando nasci."

José Luís Peixoto

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

SUBIA A LUA, LEVE...



Um luar fluido e veludoso como um bálsamo
Ungia a noite voluptuosa e ardente.
A sua luz era tão branca que tornava o céu diáfano...
Subia a lua leve como o pensamento.

Eu dialogava com o silêncio... Uma toada rústica
De flautas e violões transportou-me à saudade.
E, abstrato de mim mesmo, eu te bendisse, ó música,
Que da tristeza de pensar me libertavas!


Da Costa e Silva  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

MOMENTO



Nostalgia do céu e solidão dos anjos.
Ah! tudo se desfez ...Buscai-me nas estrelas.
Buscai-me, sim buscai-me em melodias louras.
Quem virá de outros céus, quem cantará nas luzes?
Tudo é branco demais e transparente... O riso
Vem de longe demais. As mãos afagam a morte.
As mãos se envolvem em frio e em asas e em neblinas.
O coração não volta ao mundo abandonado.
Tudo é longe demais e fluido. Eu ouço os anjos...
Sou a sombra perdida em músicas e chamas.
Sou alguém que perdeu o reino e está de bruços
Sofrendo a solidão e o exílio, está de bruços,
Desterrado da paz e do país dos anjos...

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LUZ



Luz — concepção primeira e cósmica da Treva!
por esse teu fulgor lançares, dispenderes,
a beleza da Forma o olhar atrai e enleva,
goza a vista os da Cor emotivos prazeres.

Por ti flutua no ar dos perfumes a leva
és o verbo de Deus, o poder dos poderes,
o alimento vital que as cousas todas ceva,
o calor que impulsiona a máquina dos seres.

És o semen do Sol, que a Mãe-Terra fecunda,
que na treva germina e várias formas toma,
de cuja produção a humanidade é oriunda.

Possa eu sempre te ver por tudo distribuída,
luz que és som, luz que és cor, que és sangue força e aroma
que és a idéia a medrar no cérebro da vida.


Gilka Machado — 
in Cristais Partidos

terça-feira, 20 de novembro de 2012

RECORDAÇÃO



E tu esperas, aguardas a única coisa 
que aumentaria infinitamente a tua vida; 
o poderoso, o extraordinário, 
o despertar das pedras, 
os abismos com que te deparas. 

Nas estantes brilham 
os volumes em castanho e ouro; 
e tu pensas em países viajados, 
em quadros, nas vestes 
de mulheres encontradas e já perdidas. 

E então de súbito sabes: era isso. 
Ergues-te e diante de ti estão 
angústia e forma e oração 
de certo ano que passou. 


RAINER MARIA RILKE 
In O Livro das Imagens, 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

POR AÍ ALÉM



Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.


Carlos Drummond de Andrade,
in Poesia Errante 

PURGATÓRIO


É preciso expiar
a cada dia
a culpa do primeiro
sangue derramado
do desencontro de ontem
da falta de apetite
da perda da memória

Antonio Fernando De Franceschi
In: Tarde Revelada Poemas

domingo, 18 de novembro de 2012

O OFÍCIO DA PAIXÂO



Exercer a cada dia
o ofício da paixão :
um vento estranho
varre a tarde
bate as portas
abre caminho nas pedras

a cada dia o ofício
humano da paixão
como quem buscasse
com os olhos
o sentido das horas

entre a luz e a sombra
um frágil universo se equilibra
com suas tortuosas montanhas

ROSEANA MURRAY
in Pássaros do Absurdo

terça-feira, 13 de novembro de 2012

CITAÇÃO


"Não existe caminho para a felicidade.
A felicidade é o caminho."

Mahatma Gandhi

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

SOMOS O RIO



Somos o tempo, somos a famosa
parábola de Heraclito, o Obscuro.
Somos a água, não diamante duro
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos esse rio
a olhar-se no rio. A sua imagem
muda na água do espelho entre as margens,
no rio que varia, fogo cego.
Somos o rio vão, predestinado
rumo ao seu mar. De fogo está cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda lesta.
E no entanto há algo que ainda resta
e no entanto ainda há algo que se queixa.

Jorge Luís Borges,
 in Os Conjurados

domingo, 11 de novembro de 2012

O REGRESSO



Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina,
in "Como se desenha uma casa"

sábado, 10 de novembro de 2012

DILEMA




O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.


Antônio Cícero
de Guardar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ALEGORIA



Segunda
De poetas
e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo :
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe : saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as : tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.
Dizias ontem
que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo :
o verão não morreu, esta pedra é o verão.
E tudo permanece.
E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins
In:'Paralelo Ao Vento'

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O SILÊNCIO



O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silencio maior:
antecâmara do ultimo,
que anuncia outro depois.


Dora Ferreira da Silva
Poesia Reunida

terça-feira, 6 de novembro de 2012

FERNANDO PESSOA



É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!
Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

GARÇA


1.

de relance
mero
surpresa
é te colher
em vôo:

o já fugaz
— ponto:

em riste
no horizonte

2.

a penas
te desenho
em derrisão:

asas taorminas
securas
branco arco sob o céu

3.

pelo estuo das águas
astúcia:

flaminga?
flamínia?

no claro em pluma
alvejo sem rasura
a branca garça
em sua alvura

Antonio Fernando de Franceschi
In: . Sal

domingo, 4 de novembro de 2012

DUAS BORBOLETAS SAÍRAM AO MEIO DIA,



Duas borboletas saíram ao meio-dia,
valsaram em cima de um arroio,
flecharam para o firmamento
e repousaram sobre um raio de luz;
Depois partiram as duas
por cima de um mar reluzente,
ainda que porto algum até hoje
haja mencionado a chegada.
Se falou com elas uma ave distante,
se no mar etéreo encontraram
uma fragata ou um cargueiro,
não fui informada.

Emily Dickinson
Tradução de Paulo Mendes Campos

DEVAGAR, O TEMPO TRTANSFORMA TUDO EM TEMPO



Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

Os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

Por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.

No entanto, a eternidade existe.
Os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
Os instantes do teu sorriso eram eternos.
Os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

Foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto,
em “A Casa, A Escuridão”

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

EM VIAGEM



Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de áspero monte
E os sóis e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Fantasmas que surgiam do horizonte
A acometer meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...
Atrás deles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!
          

Antero de Quental,
 in "Sonetos"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

PÓSTUMA



Noite fechada, lúgubre, sombria.
Céu escuro, tristíssimo, nevoento,
Relâmpagos, trovões, água, invernia
E vento e chuva, e chuva e muito vento!

Abro um pouco a janela, úmida e fria;
Quedo a ver e a escutar, por um momento
O rugido feroz da ventania
E o rasgar dos fuzis no firmamento.

Quero vê-la no céu... e o céu escuro!
E, sem temer que chova e o vento açoite,
Abro mais a janela... abro, e murmuro:


Ah! talvez acalmasse o meu tormento,
— Se eu pudesse chorar, como esta noite!
— Se eu pudesse gemer, corno este vento!

Raul Machado

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FRAGMENTO...


"...
  
Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho. 


Paulo Mendes Campos
In Melhores Poemas

terça-feira, 30 de outubro de 2012

NÃO SÃO APENAS OS RELÓGIOS



Também se pode regressar
sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes é
o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.

Albano Martins
em Escrito a Vermelho,

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ESTOU CANSADO...



“Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto.

Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente; eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.”

Álvaro de Campos

domingo, 28 de outubro de 2012

FRAGMENTO LITERÁRIO




A beleza ainda me emociona muito.
Não só a beleza física, mas a beleza natural.
Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho
uma visão da natureza muito mais rica do
que eu tinha quando era jovem.

Eu reparava mais em certas formas de beleza
Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório
surpreendente de coisas magníficas e coisas belas.

Contemplar o voo do pássaro, contemplar uma
pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela...

Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho
que voou para cima de mim, à procura de comida ou
de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a
integração dos seres vivos no meio natural, para mim,
é uma coisa que considero sublime.

Carlos Drummond de Andrade,
(trecho da última entrevista publicada no suplemento
“ Idéias” Jornal do Brasil, de 22 agosto 1987)

sábado, 27 de outubro de 2012

OS JUSTOS



Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges,
in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

VEM,PRIMAVERA



Vai embora ,inverno,
leva contigo o frio,
a solidão, a saudade
e deixa vir a primavera
vestir a terra de flores,
de verde, vida e cores.

Vem,primavera:
contigo renasce a vida,
brota de novo a poesia,
renova-se a esperança.

Vem,primavera:
lança sobre nós o sol,
raio de luz,força e cor,
essência de vida de nós,
pequenos filhos da terra.

Vem primavera:
abra sorrisos,corações,
botões e céu.
A festa da vida recomeça
e eu te festejo,
primavera.

Luiz Carlos Amorim
In Emoção não tem idioma

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

BERTOLD BRECHT


“Perante um obstáculo, a linha mais curta
entre dois pontos pode ser a curva.”

―Bertolt Brecht

terça-feira, 23 de outubro de 2012

FRANZ KAFKA



"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam
 e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos
 desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?"

Franz Kafka - 
“A Metamorfose” 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

DESCONHECIDA



De repente é a viagem! É o vento que brinca com as últimas árvores visíveis.
E há um pássaro que segue longamente meu navio
E que depois, exausto, retorna.

Quem és tu que, outrora, não conhecia
E que me levas nos teus braços,
Para onde, não sei?

Quem és tu que ainda há pouco não existias
E que me olhas com esses olhos antigos e íntimos
Que contemplaram comigo o nascimento do tempo?

Quem és tu?


Augusto Frederico Schmidt
em O Caminho do Frio

domingo, 21 de outubro de 2012

DIA DE OUTONO


 
Senhor, é tempo! O estio foi bem grande.
No relógio solar pousa tua sombra,
a pela pradaria o vento expande.

Amadurece a fruta derradeira:
dá-lhe dois dias mais meridionais
em que se aperfeiçoe, e exige o mais
doce sabor à pejada videira.

Quem não tem casa, agora, não a faça;
se há alguém sozinho, assim deve ficar
a ler ou longas cartas rascunhar,
nas alamedas onde inquietos passa
enquanto as folhas tremem soltas no ar.


Rainer Maria Rilke
In: Poemas e Cartas a um Jovem Poeta