sábado, 29 de junho de 2013

FRAGMENTO



"E ninguém é eu.
E ninguém é você.
Esta é a solidão."

Clarice Lispector,
in Água viva

quinta-feira, 27 de junho de 2013

MAPA DE ANATOMIA: O OLHO




O Olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globobrilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.

Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.

O Olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no Olho, lágrimas.


Cecília  Meireles ,
in  Poesia  Completa 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A CHUVA CHOVE



 
A chuva chove mansamente ... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene ...
A chuva chove mansamente ... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine ...
 
E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono ...
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono ...
 
... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha ...
Paço de imensos corredores espectrais,
 
Onde murmurem velhos órgãos árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais ...
 
 
Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas

sábado, 22 de junho de 2013

POSTAL


 
Por cima de que jardim
duas pombinhas estão,
dizendo uma para outra:
"Amar, sim; querer-te, não"?
 
Por cima de que navios
duas gaivotas irão
gritando a ventos opostos:
"Sofrer, sim; queixar-me, não"?
 
em que lugar, em que mármores,
que aves tranquilas virão
dizer à noite vazia:
"Morrer, sim; esquecer, não"?
 
E aquela rosa de cinza
que foi nosso coração,
como estará longe, e livre
de toda e qualquer canção!

 
Cecília Meireles,
In: Retrato natural.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

PÁSSARO AZUL



Tua estirpe habitara alcândoras divinas.
Com os pés de prata e anil desceste antigos tempos.
E em minhas mãos pousaste, e o silêncio explicou-se,
por tua voz, que era de nunca e era de sempre.

Nomes de estrelas vinham sobre as tuas asas,
e era o teu corpo uma ampulheta pressurosa.
Entre as nuvens procuro o último azul que foste ...
Mas, de tanto saber, nada mais se deplora.

Como te penso tanto, e tão longe procuro
tua música além das nuvens, não te esqueças
que posso estar um dia, em lágrima extraviada,
pólen do céu brilhando entre os altos planetas.

Mas não voltes aqui, pois é pesado e triste
o humano clima, para o teu destino aéreo.
Eu mal te posso amar, com o sonho do meu corpo,
condenado a este chão e sem gosto terrestre.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

terça-feira, 18 de junho de 2013

DÁDIVA



Diante do mar dissemos: 
a nossa casa será um lugar sem desvios 
onde os amigos hão-de vir nos dias 
de sol intenso em busca de um recanto 
de sombra só disponível nas fontes. 
Virão, quem sabe, os filhos 
avistar da nossa janela 
o azul puríssimo das manhãs 
e entranhar no hálito o cheiro 
dos limos e do pão. 
Virão, quem sabe, os filhos 
com os filhos que tiveram 
para sabermos que não é tão breve 
o coração que temos.


Graça Pires
De Caderno de significados

sábado, 15 de junho de 2013

DO BEM E DO MAL



No fundo, não há bons nem maus. 
Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e
os que sentem prazer em fazer o mal. 
Tudo é volúpia...

Mario Quintana ,
in Caderno H

quarta-feira, 12 de junho de 2013

NÃO POSSO ADIAR O AMOR



 
Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas
 
Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio
 
Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação
 
Não posso adiar o coração

 
António Ramos Rosa
In: Viagem através duma Nebulosa

domingo, 9 de junho de 2013

MANOEL DE BARROS



Quando as aves falam com as pedras
E as rãs com as águas
É de poesia que estão falando

Manoel de Barros

sexta-feira, 7 de junho de 2013

VINDAS DO MAR



São coisas vindas do mar.
Ou doutra estrela.
Seixos, ouriços, astros
pequenos e vagabundos, sem bússola,
sem norte, os passos incertos. Pouco
se demoram. Como a felicidade.
Seguem outra canção, outra bandeira.
Tudo isso os olhos traziam.
Do mar. Ou doutra idade.
 
 
EUGéNIO DE ANDRADE
In Os Sulcos da Sede

terça-feira, 4 de junho de 2013

LYGIA FAGUNDES TELLES



"O menino então sorri e nem o inimigo mais
feroz resistirá a esse sorriso de quem se
oferece tão sem defesa."

Lygia Fagundes Telles ,
in Verão no aquário

domingo, 2 de junho de 2013

APENAS UM RUMOR




E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.


EUGéNIO DE ANDRADE
In Os Amantes sem Dinheiro