quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FRAGMENTO...


"...
  
Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho. 


Paulo Mendes Campos
In Melhores Poemas

terça-feira, 30 de outubro de 2012

NÃO SÃO APENAS OS RELÓGIOS



Também se pode regressar
sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes é
o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.

Albano Martins
em Escrito a Vermelho,

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ESTOU CANSADO...



“Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto.

Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo…
E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente; eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.”

Álvaro de Campos

domingo, 28 de outubro de 2012

FRAGMENTO LITERÁRIO




A beleza ainda me emociona muito.
Não só a beleza física, mas a beleza natural.
Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho
uma visão da natureza muito mais rica do
que eu tinha quando era jovem.

Eu reparava mais em certas formas de beleza
Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório
surpreendente de coisas magníficas e coisas belas.

Contemplar o voo do pássaro, contemplar uma
pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela...

Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho
que voou para cima de mim, à procura de comida ou
de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a
integração dos seres vivos no meio natural, para mim,
é uma coisa que considero sublime.

Carlos Drummond de Andrade,
(trecho da última entrevista publicada no suplemento
“ Idéias” Jornal do Brasil, de 22 agosto 1987)

sábado, 27 de outubro de 2012

OS JUSTOS



Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges,
in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

VEM,PRIMAVERA



Vai embora ,inverno,
leva contigo o frio,
a solidão, a saudade
e deixa vir a primavera
vestir a terra de flores,
de verde, vida e cores.

Vem,primavera:
contigo renasce a vida,
brota de novo a poesia,
renova-se a esperança.

Vem,primavera:
lança sobre nós o sol,
raio de luz,força e cor,
essência de vida de nós,
pequenos filhos da terra.

Vem primavera:
abra sorrisos,corações,
botões e céu.
A festa da vida recomeça
e eu te festejo,
primavera.

Luiz Carlos Amorim
In Emoção não tem idioma

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

BERTOLD BRECHT


“Perante um obstáculo, a linha mais curta
entre dois pontos pode ser a curva.”

―Bertolt Brecht

terça-feira, 23 de outubro de 2012

FRANZ KAFKA



"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam
 e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos
 desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?"

Franz Kafka - 
“A Metamorfose” 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

DESCONHECIDA



De repente é a viagem! É o vento que brinca com as últimas árvores visíveis.
E há um pássaro que segue longamente meu navio
E que depois, exausto, retorna.

Quem és tu que, outrora, não conhecia
E que me levas nos teus braços,
Para onde, não sei?

Quem és tu que ainda há pouco não existias
E que me olhas com esses olhos antigos e íntimos
Que contemplaram comigo o nascimento do tempo?

Quem és tu?


Augusto Frederico Schmidt
em O Caminho do Frio

domingo, 21 de outubro de 2012

DIA DE OUTONO


 
Senhor, é tempo! O estio foi bem grande.
No relógio solar pousa tua sombra,
a pela pradaria o vento expande.

Amadurece a fruta derradeira:
dá-lhe dois dias mais meridionais
em que se aperfeiçoe, e exige o mais
doce sabor à pejada videira.

Quem não tem casa, agora, não a faça;
se há alguém sozinho, assim deve ficar
a ler ou longas cartas rascunhar,
nas alamedas onde inquietos passa
enquanto as folhas tremem soltas no ar.


Rainer Maria Rilke
In: Poemas e Cartas a um Jovem Poeta

NATUREZA MISTERIOSA



Essa voz interior, que sempre ouvimos,
Ainda dizer não pode o que nós somos:
Tudo o que em vão pensamos e sentimos
É a antítese talvez do que supomos.

No seio panteísta de onde vimos,
Árvores – mães de flores e de pomos,
Arbustos e ervaçais, musgos e limos,
Tem o mesmo poder do que dispomos.

Não logramos saber quanto sabemos:
Névoas volúveis, ilusórios fumos,
São as idéias que de tudo temos.

Vindos da mesma essência, do mesmo húmus,
Vivemos de contrastes e de extremos
Sem ter destino, por incertos rumos ...


Da Costa e Silva
in Poesias Completas

sábado, 20 de outubro de 2012

EM MÃOS FECHADAS..



Em mãos fechadas
quis preservar o infinito
elas não se abriram
continham uma vida sem além
cerrada sobre o finito.
Soluça o engano
lágrimas tão desatinadas
escorrendo na face do nada.
Nada disse. O que diria
à surdez de um destino?
Lívida parada fiquei
e lentamente me afastei
como se apaga o som de um sino.

Dora Ferreira da Silva,
in Cartografia do Imaginário (poemas)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

SAUDADE



Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...

- João Guimarães Rosa,
 in 'Magma'.

LIVROS




Todos os livros do mundo
felicidade alguma hão de trazer-te,
pois te remetem misteriosamente
em retorno a ti mesmo.

Aqui tens tudo de que necessitas:
sol, estrelas e lua
- pois a luz que querias
em ti mesmo reside.

Sabedoria, que tanto buscavas
em bibliotecas,
em cada uma destas folhas brilha agora:
e é a tua, toda.

Hermann Hesse
In Andares

PAULO BOMFIM



"Às vezes, é preciso não pensar em nada,
 deixar que o dia penetre nossas trevas e 
enfeite nossas mãos com anéis de sol.

Paulo Bomfim
 'O colecionador de minutos.'

terça-feira, 16 de outubro de 2012

FRAGMENTOS



Tem no ar 
um perfume
de gente
Tem no ar
um perfume
de árvores
Tem no ar
um perfume
de folhas
Tem no ar
um perfume
de flores
Tem no ar
um perfume
de primavera
Tem no ar
um perfume

de vida...

Delores Pires
In A Estrela e a Busca

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A PALAVRA



Falo da natureza.
E nas minhas palavras vou sentindo
A dureza das pedras,
A frescura das fontes,
O perfume das flores.
Digo, e tenho na voz
O mistério das coisas nomeadas.
Nem preciso de as ver.
Tanto as olhei,
Interroguei,
Analisei
E referi, outrora,
Que nos próprios sinais com que as marquei
As reconheço, agora.

Miguel Torga,
Diário X

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

PEDIDO




Enche de silêncio a minha taça.
Unge-me de esquecimento.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho

terça-feira, 9 de outubro de 2012

COSMO



Na catedral constelada,
sobem leves nebulosas,
do turíbulo da noite.

Ondas incansáveis
de espaço-tempo
se quebraram, em silêncio,
aos pés de Deus.


Helena Kolody
in Luz Infinita

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

PRIMAVERA II



Dia para quem ama
Dia límpido e claro!
O azul do céu, o azul da terra, o azul do mar!
Dia para quem é feliz e sem tormento
Dia para quem ama e não sofre de amor!
Dia para as felicidades inocentes.

Em mim, a mocidade acordou violentamente
Porque o sol expulsou as trevas e inundou-me!
Uma pulsação de vida enche meu ser doentio e incerto.

Vejo as águas correndo
Vejo a vida e o espaço
Vejo as matas e as grandes cidades líricas
Vejo os vergéis em flor!
É a primavera! É a primavera!
Desejo de tudo abandonar e sair cantando pelos caminhos!

Augusto Frederico Schmidt
In: UM SÉCULO DE POESIA

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

PALAVRAS



Nenhum ramo
é seguro. Frágeis
são as palavras.

Albano Martins

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

SOU ESSA FLOR



Tua vida é um grande rio, vai caudalosamente,
a sua beira, invisível, eu broto docemente.
Sou essa flor perdida entre juncos e achiras
que piedoso alimentas, mas acaso nem olhas.

Quando cresces me levas e morro em teu seio,
quando secas morro pouco a pouco no lodo;
Mas de novo volto a brotar docemente
quando nos dias belos vais caudalosamente.

Sou essa flor perdida que brota nas tuas margens
humilde e silenciosa todas as primaveras.

Alfonsina Storni
(Tradução de Héctor Zanetti)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

E POR VEZES...



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

SUBITAMENTE



Subitamente,
anoiteceu em mim.

Pungiu-me a dor de viver.

Helena Kolody
in Correnteza