quinta-feira, 28 de março de 2013

BICHOS E NUVEM



Estranhos bichos de nuvem
habitam o céu.
Basta deitar na grama
e olhar para cima:
velozes, os bichos se arrumam
e desarrumam.

Manadas de elefantes,
enquanto caminham,
transformam-se em tigres,
águias,dinossauros.

Basta piscar um olho e borboletas gigantes
tapam o sol.Então o vento varre o céu
com vassoura invisível,
e já não há bicho nenhum:
estou só com meus pensamentos.

Roseana Murray
In Pêra,Uva ou Maça.

quarta-feira, 27 de março de 2013

CREPÚSCULO DE ABRIL



Longa pincelada de cinábrio, no poente,
sublinha os nimbos gris.

A púrpura veludosa do amaranto
veste os jardins do outono.

Dorme a névoa dos vales.
No coração transido, a noite desce.

Helena Kolody

terça-feira, 26 de março de 2013

AMIGO



que um amigo se reconheça
sempre
na face de outro amigo
e nesse espelho descanse
seus olhos
e derrame sua alma
como a crina de um cavalo
levemente pousada no vento

Roseana Murray
In Poesia Essencial.

domingo, 24 de março de 2013

SONETO DO AMIGO



Enfim, depois de tanto erro passado 
Tantas retaliações, tanto perigo 
Eis que ressurge noutro o velho amigo 
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado 
Com olhos que contêm o olhar antigo 
Sempre comigo um pouco atribulado 
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano 
Sabendo se mover e comover 
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...


Vinícius de Moraes,
In Poesia completa e prosa, 1998 

Poesias Coligidas






sábado, 23 de março de 2013

EU



Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

FLORBELA ESPANCA,
 In LIVRO DE MÁGOAS 

sexta-feira, 22 de março de 2013

VLADIMIR NABOKOV


"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso 
comum diz-nos que a nossa vida mais não é do que 
uma brecha de luz entre duas eternidades de treva.
 Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem 
olhe com maior calma o abismo pré-natal do que o outro
 para onde se dirige (a qualquer coisa como quatro mil
 e quinhentas batidas de coração por hora).
 Sei no entanto de um jovem cronofóbo que entrou numa
 espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas 
filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido.
 Viu um mundo praticamente igual - a mesma casa, 
as mesmas pessoas - mas reparou que ele próprio ainda
 lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência.
 De relance viu a mãe a dizer adeus na janela do andar 
de cima, e esse estranho gesto perturbou-o como se fora
 uma misteriosa despedida. Porém, o que mais susto lhe
 meteu foi a imagem de um carro de bebé com ar pretensioso,
 com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado
 no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios 
ossos, nessa corrida inversa de factos, 
se tivessem desintegrado."

Vladimir Nabokov,
 in Na outra margem da memória


quinta-feira, 21 de março de 2013

OUTONO




O Outono escreve com vento
longas cartas alaranjadas
de luz diáfana
e traz como um perfume
a presença dos amigos ausentes,
dos sonhos antigos,
dos desejos que guardávamos
em caixinhas de música.

O outono nos convida

para o longo baile
dos amores perdidos:
convém reinventar roupas
de seda e renda,
gestos lentos e palavras
tecidas com suspiros.

Roseana Murray

In Rios de alegria.

terça-feira, 19 de março de 2013

RECEITA PARA PLANTAR UMA ÁRVORE



bem cedinho quando a estrela da manhã
ainda toma conta do céu
cantar uma semente na palma da mão
como cantam as águas quando acordam
plantar a semente e seu futuro
de folhas e frutos
de sombra ao meio-dia
adivinhar na semente a seiva
o barulho do tempo.

Roseana Murray
In Receitas de olhar

sábado, 16 de março de 2013

ENTRE O CÉU E O MAR



Entre o céu e o mar
Há o infinito de esperas,
Conflito de incertezas,
Interrogação de cores,
Tristeza no olhar,
Prenúncio de paisagens.

Alvina Nunes Tzovenos
in 'Busca de Infinitos'

sexta-feira, 15 de março de 2013

CITAÇÃO


"A devoção não está no joelho que se dobra,
 mas no coração, que não se vê dobrar".

Balzac 


terça-feira, 12 de março de 2013

RAINER MARIA RILKE



«Duas pessoas com o mesmo grau de paz
não precisam falar da melodia que define as suas horas.
Essa melodia é o que elas têm de comum entre si e por si.
Existe entre elas algo como um altar ardente,
e elas aproximam-se da chama sagrada 
respeitosamente 
com as suas raras sílabas.»

Rainer Maria Rilke

domingo, 10 de março de 2013

ERICO VERÍSSIMO



"Se me pedissem para sugerir um símbolo gráfico para a idéia
de Tempo, eu indicaria sem hesitação a imagem duma oliveira.
Por quê?
Talvez por causa de suas conotações bíblicas,
pelo aspecto sofrido de seus troncos e galhos e por tudo quanto
o óleo que o fruto dessa árvore produz tem a ver com a vida
e a morte: o óleo do batismo, o óleo da extrema-unção, enfim,
o óleo que mantém acesas as lâmpadas, não só a dos templos,
mas todas as lâmpadas do mundo que iluminam a noite dos homens."

- Erico Verissimo,
in Solo de Clarineta 

 

quarta-feira, 6 de março de 2013

O IMPOSSÍVEL CARINHO



Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Manuel Bandeira
In:"Melhores poemas"

segunda-feira, 4 de março de 2013

MANOEL DE BARROS



"As imagens são palavras que nos faltaram." 

Manoel de Barros

sexta-feira, 1 de março de 2013

ESTRADA


 
Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho
manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.

Manuel Bandeira,
in "Estrela da Vida Inteira - O ritmo dissoluto"