"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso
comum diz-nos que a nossa vida mais não é do que
uma brecha de luz entre duas eternidades de treva.
Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem
olhe com maior calma o abismo pré-natal do que o outro
para onde se dirige (a qualquer coisa como quatro mil
e quinhentas batidas de coração por hora).
Sei no entanto de um jovem cronofóbo que entrou numa
espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas
filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido.
Viu um mundo praticamente igual - a mesma casa,
as mesmas pessoas - mas reparou que ele próprio ainda
lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência.
De relance viu a mãe a dizer adeus na janela do andar
de cima, e esse estranho gesto perturbou-o como se fora
uma misteriosa despedida. Porém, o que mais susto lhe
meteu foi a imagem de um carro de bebé com ar pretensioso,
com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado
no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios
ossos, nessa corrida inversa de factos,
se tivessem desintegrado."
Vladimir Nabokov,
in Na outra margem da memória