sexta-feira, 22 de março de 2013

VLADIMIR NABOKOV


"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso 
comum diz-nos que a nossa vida mais não é do que 
uma brecha de luz entre duas eternidades de treva.
 Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem 
olhe com maior calma o abismo pré-natal do que o outro
 para onde se dirige (a qualquer coisa como quatro mil
 e quinhentas batidas de coração por hora).
 Sei no entanto de um jovem cronofóbo que entrou numa
 espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas 
filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido.
 Viu um mundo praticamente igual - a mesma casa, 
as mesmas pessoas - mas reparou que ele próprio ainda
 lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência.
 De relance viu a mãe a dizer adeus na janela do andar 
de cima, e esse estranho gesto perturbou-o como se fora
 uma misteriosa despedida. Porém, o que mais susto lhe
 meteu foi a imagem de um carro de bebé com ar pretensioso,
 com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado
 no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios 
ossos, nessa corrida inversa de factos, 
se tivessem desintegrado."

Vladimir Nabokov,
 in Na outra margem da memória


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