quarta-feira, 31 de julho de 2013

HERBERTO HELDER




«Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão,
uma grande ignorância. Olhava para as coisas: 
eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. 
Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia:
era um espaço palpitantemente vazio.» 

Herberto Helder,
in Os Passos em volta


terça-feira, 30 de julho de 2013

EU NÃO SOU EU



Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.
Que permanece em silêncio quando estou falando.
Que perdoa e esquece quando estou irado, esbravejando.
Que segue sereno quando estou aflito, sofrendo.
E que estará de pé quando eu estiver morrendo.
Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.

Juan Ramón Jiménez

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A FLOR TEM LINGUAGEM...


A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir,
E era o que se pedia: igual.
 
 
Almada Negreiros,
 in  Poemas

quarta-feira, 24 de julho de 2013

HAICAI


Nada me pertence -
só a paz interior
e a frescura do ar

Kobayashi Issa,
 Verão

domingo, 21 de julho de 2013

AMIGO



Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


 Alexandre O’Neill 
in No Reino da Dinamarca

sábado, 20 de julho de 2013

VIAGEM NAS CORES



Penetraremos no azul e no vermelho.
Mais que a abelha na flor,
nossos olhos viajarão pelos reinos das cores:
nesses campos e oceanos de safira e rubi.

Conheceremos a surda profundidade,
o peso do brilho, da luz contidos no vermelho e no azul.
É outro mundo, de outubro sol, com densidades de água e veludo.
Iremos, de horizonte em horizonte,
Iremos pelo sufocado fogo dos cintilantes tapetes.

(Quando nossos olhos voltarem, seremos, no cotidiano crepúsculo,
como pássaros e sereias
orvalhos de estrelas e ondas
e caídos na areia fosca.)

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

domingo, 14 de julho de 2013

FANTASIAS



Sou rio que nunca dorme
escoo abrindo caminhos
obstinando mar alto
em torno ao próprio ninho

fantasiando encontros
no remanso do carinho. 


Warllem Silva
In: Infinitude da Graça

sábado, 13 de julho de 2013

MADRUGADA NO CAMPO



Com que doçura essas brisa penteia
a verde seda fina do arrozal -
Nem cílios, nem pluma,
nem lume de lânguida lua,
Nem o suspiro do cristal.

Com que doçura a transparente aurora
tece na fina seda do arrozal
aéreos desenhos de orvalho!
Nem lágrima, nem pérola,
nem íris de cristal...

Com que doçura as borboletas brancas
prendem os fios verdes do arrozal
com seus leves laços!
Nem dedos, nem pétalas
nem frio aroma de anis em cristal

Com que doçura o pássaro imprevisto
de longe tomba no verde arrozal!
- Caído céu, flor azul, estrela última:
súbito sussurro e eco de cristal


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas 

sexta-feira, 12 de julho de 2013

LIBERDADE



Dir-te-ei: há cavalos verdes nas margens
do vento arrostando a claridade do dia quando 
a luz se inclina levemente para um sul inacessível
e a palavra mais livre se abre na voz. 
Haja o que houver a liberdade é aqui, 
onde apertamos a esperança contra o peito.

Graça Pires
De Caderno de significados

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR



A gente sempre deve sair à rua
como quem foge de casa
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos,
as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe,
de alma aberta e o coração cantando!

- Mario Quintana,
in: A cor do invisível, 1989

quarta-feira, 10 de julho de 2013

AGORA AS AVES VOLTAM



Agora as aves voltam,
são nos ramos altos a matéria 
mais próxima dos anjos 
– ousarei eu tocar-lhes, 
fazer delas o poema? 

Eugénio de Andrade,
In O Peso da Sombra

sábado, 6 de julho de 2013

CAMPO



Campo da minha saudade:
vai crescendo, vai subindo,
de tanto jazer sem nada.

Desvelo mudo e contínuo
que vai revestindo os montes
e estendendo outros caminhos.

Mergulhada em suas frondes,
a tristeza é uma esperança
bebendo a vazia sombra.

Águas que vão caminhando
dispersam nos mares fundos
mel de beijo e sal de pranto.

Levam tudo, levam tudo
agasalhado em seus braços.

Campo imenso - com o meu vulto...

E ao longe cantam os pássaros.


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas

quarta-feira, 3 de julho de 2013

MEIO DA VIDA



Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra

A casa compõe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida


Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II

terça-feira, 2 de julho de 2013

CAMUFLAGEM



CAMUFLAGEM 

" A hortência é uma couve-flor pintada de azul ." 

Mario Quintana ,
in " A Vaca e o Hipogrifo "

CANÇÃO AZUL



Triste, Poeta, triste a florinha azul que sem querer
Pisaste no teu caminho. . .
Miosótis, - disseste, inclinado um instante sobre ela.
E ela acabou de morrer, aos poucos, dentre a relva úmida.
Sem nunca ter sabido que se chamava miosótis.
Nem que iria impregnar, com o seu triste encanto,
O teu poema daquele dia. . . 

Mário Quintana
In: Canções