domingo, 30 de novembro de 2014

O MUNDO DO SONHO




O mundo do sonho é silencioso
como o mundo submarino. Por isso
é que faz bem sonhar.

Mario Quintana
in Caderno H





RUA



Procuro a rua
que ainda me resta:
é longa, é alta,
não é essa. 

Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta. 

Em cada esquina
havia festa:
é clara, é vasta,
não é essa. 

Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta. 

Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.


Cecília Meireles,
in Poesia Completa
Sonhos 


CÂNTICO I





Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto, 
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
te ponha em tudo, 
como Deus.

Cecilia Meireles
In: Cânticos 






sexta-feira, 28 de novembro de 2014

"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."



Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"SONS PERDIDOS"




Vês o céu, a campina, a natureza,
Este campo infinito de poesia?
Vês as nuvens doiradas que se agitam
Ao cair da neblina em pleno dia?

Vês as garças que pairam sonolentas
Nesta praia isolada que me inspira?
Pois, cantor, o que vês, tudo pertence
Da minh'alma sonora à rude lira.

Serenatas de brisa - vozes soltas
De folhagem bolida pelo vento,
tudo n'alma me cai como um idílio,
Tudo acolhe a sorrir meu pensamento.

Amo a terra somente pelas flores,
Pelas brumas azuis do alvorecer,
Pelas asas gentis das borboletas
Que me fazem de inveja estremecer.

Amo o céu à tardinha pelas cores
Que ele ostenta a sorrir ao pôr-do-sol;
Amo os raios da lua em noite bela...
Amo as nuvens fagueiras do arrebol.

Amo as brisas do mar - as brisas mansas
Que me inspiraram sonhos de alegria;
Que embalsama a terra onde adormeço
Ao balanço da rede em pleno dia.

A minha alma é formada de harmonias
E só vive de luz, de vibrações;
Como a flor que viceja à beira d'água,
Ela vive a cantar nas solidões.



Júlia da Costa 
em 'Flores Dispersas'
 






CANÇÃO DO EXÍLIO





Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota
In Planície dos Mortos

terça-feira, 25 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS



O gorjeio dos pássaros tem um perfume de sol?


|Manoel de Barros
 - Menino do Mato|



domingo, 23 de novembro de 2014

COMO UMA FLOR VERMELHA




À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Poesia

AS NUVENS




As nuvens
não têm preocupação estética.
Sou eu
que as organizo
para meu regozijo esperto.

Elas simplesmente se desfazem
e nem disto sabem
mas eu as estudo, eu as apuro
como Turner
e alguns poetas
que organizaram  o entardecer.

A natureza
não tem preocupações  morais.
A natureza não mata
nem odeia.

Ou melhor:

mata e ama
de igual maneira
e todo movimento
é  desejo
de viver.

A morte
é apenas uma forma estranha
da vida

se refazer.

Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha 




MINHA TERRA




Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha. 
– Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha. 

Correi pras bandas do sul: 
Debaixo de um céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil. 
– É uma terra de amores, 
Alcatifada de flores, 
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de abril. 

Tem tantas belezas, tantas, 
A minha terra natal, 
Que nem as sonha o poeta
E nem as canta um mortal! 
– É uma terra encantada
– Mimoso jardim de fada –
Do mundo todo invejada, 
Que o mundo não tem igual.



Casimiro de Abreu (1839-1860)
in Primaveras

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

APONTAMENTO




Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!

Subo por essas horas
solitária e sincera, 
e encontro, exausta e pura, 
minha alma que me espera.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

domingo, 9 de novembro de 2014

TRÊS ORQUÍDEAS



As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus olhos roxos.
Elas são alvas, toda pureza,
com uma leve mácula violácea para uma pureza de sonho triste, um dia.
Que dia? Que dia? Dói-me a sua brevidade.
Ah! não vêem o mundo. Ah! não me vêem como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o terno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno.

As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Que elas não vêem o mundo, que o mundo as visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu desaparecimento.
E aspira sobre elas a gentileza igualmente frágil, a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha vida.

Durai, durai, flores, como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas,
que escrevo para perdurares em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de alabastro.

Cecília Meireles
In "Flor de Poemas" 








MARINHA




O BARCO é negro sobre o azul.

Sobre o azul, os peixes são negros.

Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.

Sobre o azul, os peixes são negros.
Negras são as vozes dos pescadores,
atirando-se palavras no azul.

É o último azul do mar e do céu.

A noite já vem, dos lados de Burma,
toda negra,
molhada de azul.

- a noite que chega também do mar.

Cecilia Meireles.
In Poemas escritos na ìndia


CAVALO BRANCO




Cavalo branco
de crinas de ouro
buscando o trevo
entre as margaridas, 

que é da fortuna
da donzelinha,
solta da sela
em várzeas antigas?

E as velhas fontes
contam histórias,
tristes, risonhas,
de terras perdidas,

e as lavadeiras
detrás dos muros
cantam, muito alto,
chorosas cantigas.

Cavalo branco
de crinas de ouro,
mostra-me o trevo
entre as margaridas!

Cecília Meireles
In: Canções


A CHUVA


 

O bom da chuva é que parece que não tem fim...
Nenhuma das outras coisas me dá essa resignada,
tranquilizadora sensação de fatalidade.

Mario Quintana,
in Caderno H

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

PALMEIRA IMPERIAL



Mostras na glória um coração mesquinho...
Numa beleza esplêndida, que aterra,
Passas desencadeando um ar de guerra,
Sem deixar um perfume no caminho.

Como a palmeira, não susténs um ninho!
Não és filha, mas hóspede da Terra;
Subjugando a planície, na alta serra,
- Cruel às aves, seca de carinho.

Há no deslumbramento do teu porte
Tédio, orgulho, desdém: talvez saudade
De outra vida, ambição talvez da morte...

Como a palmeira, tens a majestade,
E dela tens a desgraçada sorte:
A avareza da sombra e da piedade.

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


domingo, 2 de novembro de 2014

RIO GRANDE ACIMA*



Ouro, prata, cascalho, cal, barro.
O rio
e a flora Vida que acolhe e afronta.
 
Água, areia, árvores, frutas, faro.
O rio
e a fauna que há séculos alimenta.
 
Rumo País acima sobre eras além.
O rio,
seus braços, boca e veia
amazônica - no bravo dorso de Belém.
 
Avanço com o grande rio;
avisto Atlântico oceano - delta além.
 
Avanço com o grande rio,
vomito peixes, estrelas, rimas fáceis.
 
(Saúdo a bendita companhia dos botos)
 
Avanço com o grande rio,
seu visceral odor e perene casto lavor.
 
Avanço com o grande rio,
suas artérias abertas; sua cara dor.
 
Enveredo por sua atávica coreografia;
sua capilaridade que revela orgânico plano.
 
Armo redes, deito esteiras rente ao mar:
naquele espoucar de estrelas, aspiro
cometas insanos em sua trajetória sã.
 
Olhar e ver; avançar com o grande rio,
fauna e floresta afoitas, a força do Verde,
que tudo abarca - nunca é tarefa vã!
 
 
*Jairo De Britto,
 em "Dunas de Marfim"