domingo, 31 de agosto de 2014

METAMORFOSE



No combate entre o gelo e o fogo
A vida universal desdobra-se em ciclos
No espaço de mil séculos.
Tomamos consciência do cósmico,
Tentamos ligações com o espírito há muito abatido
E a alma afunda em dimensões pulverizadas.
Dá-se a recuperação das espécies rejeitadas,
O achado do perdido não procurado.
Do implacável e do flamejante
O universo não está terminado.
Há mutações silenciosas em cada instante que soçobra
E que só percebemos da metamorfose de mil em mil séculos.

Somos casulos pendurados nas folhas de árvores sem nome,
Casulos à espera da metamorfose cíclica do tempo.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

CÉU



Sensação longínqua do que é vivo,
teu nome é miragem. 

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964



SAUDADE




Ó!
o lírio branco se tingiu de roxo
ao som da valsa da melancolia.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ROTINA DE TODOS NÓS



Ser fragmento do transitório,
Analisar-se no mistério do demudado,
Saber perder o que jamais foi possuído
Mas desejado,
Esperar o que nunca foi criado,
Cravar-se em raízes já extintas,
Conduzir-se por idéias não nascidas,
Ver grandezas na própria fraqueza,
Proclamar o amor sobre o desamor,
Ser pureza ao lado da degradação
É existir no que não tem sentido,
É esquecer o que não foi pensado,
É caminhar sem deixar traços,
É ser pássaro sem asas
É tentar sair do chão para os espaços.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)


ESPERAM POR MIM




Tenho que seguir,
Me espera na silenciosa e abandonada estrada
A pedra que me saudará em nome dos meus ancestrais.
No reencontro deixarei uma lágrima de promessa
E seguirei
Porque a árvore que dorme paciente nos séculos
Se agitará com a minha presença
Para recordar-me o vivo passado
Quando os meus pais eram ainda
Fios de raízes nos ventres maternos.
Tenho que seguir
Pois me espera na grande floresta úmida
A corça adolescente
Que repetirá na minha memória
O caminhar da minha reta.
E eu seguirei
Porque o rio me espera
Com a boca junto à terra
Para sugar-me
E depois caminharmos
Como águas cantantes e inquietas
No corpo do Universo.


Adalgida Nery 
in Cantos da Angústia

VELHAS ÁRVORES



“Olha estas velhas árvores, — mais belas,
Do que as árvores mais moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas*…

O homem, a fera e o inseto à sombra delas
Vivem livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E alegria das aves tagarelas…

Não choremos jamais a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória da alegria e da bondade
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!”

Olavo Bilac
in 'Poesias Infantis', 

domingo, 17 de agosto de 2014

PALMEIRA



Olho a nobre palmeira, em cujo cimo, a fronde
Se agita a farfalhar; e, ora canta e assobia, 
Ora esbraveja, em fúria, ou solta, de onde em onde, 
Gemidos de uma atroz, lancinante agonia . . .

Que alma contraditória em teu cerne se esconde 
Que te faz rir, alegre, ou suspirar, sombria? 
E a palmeira imperial, humilde, me responde:
-Não sou eu! Quem me agita a fronde é a ventania!

Olho, agora, aos meus pés uma couve tronchuda 
As folhas oscilando em leve movimento,
Para cá, para lá conforme o vento muda.

-Esta, digo eu, não tem prazer nem sofrimento!
E ela, abrindo num riso a face repolhuda, 
Impa de orgulho e diz: - Sou eu quem faz o vento!


Bastos Tigres
Antologia Poética

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A LAGARTA



Por sobre as ramas da árvore coleia
A lagarta. E a colear, viscosa e lenta,
O seu aspecto as vistas afugenta
E de tocá-la a gente se arreceia.

Verde-negra, amarela, azul, cinzenta, 
Quando o sol as folhagens incendeia,
Sobe a aquecer-se, e à luz solar, aumenta 
O asco de vê-la repulsiva e feia. 

Mas eis que a encerra do casulo a tumba;
Não penseis que, de todo, ela sucumba 
No seu sepulcro eternamente presa.

Qual, do corpo, alma livre, desprendida,
È borboleta: evola-se a outra vida, 
Voando feliz, na glória da beleza.


Bastos Tigres
Antologia Poética

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

NÃO ME DEIXES!




Debruçada nas águas dum regato
        A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
        "Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
        Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
        Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
        Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
        "Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
        À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
        "Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
        Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
        Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
        Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
        "Não me deixaste, não!"


Gonçalves Dias 
-  'Cantos', 1857