segunda-feira, 29 de setembro de 2014

CHUVA




Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as arvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.

Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.

Abril, 1954

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

ANTIECLESIASTE




Chuva nas nuvens,
flores nas arvores,
lágrimas em nós.

Estação de chuva,
estação de flores.
O tempo inteiro para as lágrimas

Por isso estamos tão extenuados:
todos os tempos foram de chorar.

1949

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

SAUDADES




Um sabiá cantou.
Longe, dançou o arvoredo.
Choveram saudades.

Helena Kolody,
in Viagem no Espelho

sábado, 27 de setembro de 2014

A FOLHA




A natureza são duas.
Uma,
tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou é a ilusão das coisas?

Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fachada, sagrada
arca de vidas autônomas?

A pretensão de ser homem
e não coisa ou caracol
esfacela-me em frente à folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.


Carlos Drummond de Andrade
In Poesia Completa

ATUALIDADE DO AZUL



Uso a palavra azul como quem ousa
usar a asas do pássaro e reduzo
o símbolo da cor a qualquer cousa
tornada conivente pelo uso.


Sem asa e azul o pássaro não pousa
nas nuvens do real, como me escuso
de inscrever a palavra numa lousa
ou de enterrá-la como um parafuso.


Mas o azul não incide nos meus atos
nem o vôo do pássaro me oprime
a ponto de frear os meus sapatos.


Uso azul quando azul em terra escôo,
mesmo porque não configura crime
falar de céu quando o assunto é vôo.

1963


Lago Burnett
In: Estrela do Céu Perdido

FLOR DO MAR




És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio,
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.

Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.

Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços…

Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens musicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços…

Cruz e Sousa
In ‘Broquéis' (1893)

SONETO DE PAZ



‘Cismando, o campo em flor, eu vi que a terra
Pode ser outra terra, de outra gente,
Para o prazer armada e competente
E desarmada para a voz da guerra.

No chão, olhando o céu que nos desterra,
Sem terminar falei, presente, ausente,
Ó vento desatado da vertente,
Ó doce laranjal sem fim da serra!

Mais tarde me esqueci, mas esse instante
De muito antiga perfeição campestre
Fez-me constante um pensamento errante:

Era o sem tempo, a paz da eternidade
Unindo a luz celeste à luz terrestre
Sem solução de amor e de unidade’.


Paulo Mendes Campos
In: O Domingo Azul do Mar

FLAMBOYANT



Ao sol que a doura e abrasa, ao sol que anima e inflama,
Arria-se, aureolada, a árvore senhorial
De faustosos festões e, rubra, se recama
De flores de ouro e fogo, aberta em flores mil.

Fascinante a cimeira, ostenta, rama a rama,
O encanto natural da flor rara e gentil,
De pétalas de sangue e sépalas de chama;
E, em vez de folha, a flor esplende em cada hastil.

O flamboyant florindo, o florígero estema,
Flutuante a flamejar, num rubor de arrebol,
- Pompéia, iriando à luz, a floração suprema.

E a fulgurar floresce, até perder, em prol
De outra copa mais linda, o purpúreo diadema,
Morrendo pela vida, em holocausto ao sol.


Da Costa e Silva
Poesias Completas



sexta-feira, 26 de setembro de 2014

DRAMA




A quem falo no mundo? Por quem foi
Esta bandeira branca de poeta?
A quem descubro a chaga que me rói
Por não ser seu artista e seu profeta?

A quem arranco com beleza a seta
Do calcanhar humano que lhe dói?
A quem vejo chegado à sua meta,
Novo senhor da terra e novo herói?

A nenhum homem, que a nenhum conheço.
Água de um rio que não tem começo,
Nas duas margens sinto o mesmo não.

Mas na direita a vida é gasta e velha...
Só na outra uma chama se avermelha
Capaz de me aquecer o coração.


Miguel Torga
in ‘Libertação’

MANHÃ




Fresca manhã da vida, recomeço
Doutros orvalhos onde o sol se molha.
Nova canção de amor e novo preço
Do ridente triunfo que nos olha.

Larga e límpida luz donde se vê
Tudo o que não dormiu e germinou;
Tudo o que até de noite luta e crê
Na força eterna que o semeou.

Um aceno de paz em cada flor;
Um convite de guerra em cada espinho;
E os louros do perfeito vencedor
À espera de quem passa no caminho.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

PERENIDADE




Nada no mundo se repete.
Nenhuma hora é igual à que passou.
Cada fruto que vem cria e promete
Uma doçura que ninguém provou.

Mas a vida deseja
Em cada recomeço o mesmo fim.
E a borboleta, mal desperta, adeja
Pelas ruas floridas do jardim.

Homem novo que vens, olha a beleza!
Olha a graça que o teu instinto pede.
Tira da natureza
O luxo eterno que ela te concede.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’



APELO



Água parada nos baixios:
Passa o rio veloz, alegre, quente
No desejo fraterno doutros rios,
E a tua força aí a olhar, dormente!

Sei que uma folha em ti é mais presente,
Mais romântica e morta doutros frios;
Sei que a lua penteia no teu pente
Os seus longos cabelos fugidios.

Mas apodrece em ti a vida!
A seiva, o ar, o sol, são a partida
De um levedar soturno e sem grandeza.

Água dormente, foste chuva alada!
Foste nascente e túnica orvalhada
Do corpo matinal da natureza!


Miguel Torga
In ‘Libertação’

FASCINAÇÃO



Canta-lhe o vento as áreas que conhece,
E nenhuma perturba aquele olhar.
Nenhuma o transfigura ou adormece
E o tira de sentir e de fitar.

Terra de consciência iluminada,
Limpa na sua luz pensada e fria,
A celeste canção enluarada
Nenhuma paz humana lhe daria.

Não, porque o vento só conduz aladas
Forças que oscilam a raiz;
E aquele olhar quer descobrir paradas
Seivas da vida que a razão lhe diz.


Miguel Torga


CHUVA




Chove uma grossa chuva inesperada
que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
uma paz que há-de ser.
Uma gota invisível e distante
na janela, a escorrer.

Miguel Torga

AVE DA ESPERANÇA




Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.

Miguel Torga 
In ‘Obra Completa’

CÂNTICO




Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora

Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida. 


Miguel Torga
In ‘Obra Completa’

MAR



Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Era um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia louca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!


Miguel Torga*
" Poemas Ibéricos" 1.965


CONFIANÇA



O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...

Miguel Torga

SEGREDO




Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar... 

Miguel Torga,
 Diário VIII

CHOVE.HÁ SILÊNCIO



Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva 
Não faz ruído senão com sossego. 
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva 
Do que não sabe, o sentimento é cego. 
Chove. Meu ser (quem sou) renego... 

Tão calma é a chuva que se solta no ar 
(Nem parece de nuvens) que parece 
Que não é chuva, mas um sussurrar 
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece. 
Chove. Nada apetece... 

Não paira vento, não há céu que eu sinta. 
Chove longínqua e indistintamente, 
Como uma coisa certa que nos minta, 
Como um grande desejo que nos mente. 
Chove. Nada em mim sente... 

Fernando Pessoa,
 in "Cancioneiro" 

DEMISSÃO



Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis" 

PASSA UMA BORBOLETA POR DIANTE DE MIM...



Passa uma borboleta por diante de mim 
E pela primeira vez no Universo eu reparo 
Que as borboletas não têm cor nem movimento, 
Assim como as flores não têm perfume nem cor. 
A cor é que tem cor nas asas da borboleta, 
No movimento da borboleta o movimento é que se move, 
O perfume é que tem perfume no perfume da flor. 
A borboleta é apenas borboleta 
E a flor é apenas flor.

Alberto Caeiro,
 in "O Guardador de Rebanhos - Poema XL" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

SONETO DA TRANSFIGURAÇÃO



Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.


Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.


Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha


Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.


Paulo Bonfim
in Sonetos-2000-

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

DA PROCURA QUASE MÍSTICA




A rua é um campo de papoulas. Cada
Destino cinge-se do sangue e augura
O Encontro. E todos ardem na procura
De algo impreciso, chama soterrada;

Sombrio sortilégio, luz buscada
Em noite interna ou na charneca impura.
Em todos, esse mapa de aventura
E a certeza de ter hora marcada;

O toque intransmissível, inadiável,
O momento suspenso, o ser pendente
Sobre a treva quebrada em lantejoulas;

O Encontro está presente, indecifrável:
Os Fados vão cruzando novamente,
A rua campo inquieto de papoulas.


Paulo Bomfim
Sonetos da vida e da morte
1963

terça-feira, 23 de setembro de 2014

TARDE DE PRIMAVERA




No céu da tarde - revoada de andorinhas.
De que sala do espaço vês
a primavera e o calor dos peitos brandos?
Canta o silêncio além do ouvido
uma nuvem perpassa tules
por entre pássaros.
O amor se lembra: beijos foram dados -
colar de pérolas desprendidas
nenhuma delas foi perdida
e um coração pulsou mais forte.
Revoada de andorinhas no céu da tarde
arde a nuvem agora e se transmuta
em canção: pássaros escutam
Voa coração, para a distância
e lembra ao distante
esta presença feita de vida e dança:
o que foi e o que é na mesma trança.

Dora Ferreira da Silva
In Cartografia do Imaginário

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

ANSEIO



Ah, eu quisera ser aquela árvore
coberta pelas garças brancas de vôo incerto!
Árvore plantada pelo acaso
à margem do rio enorme!
Árvore de frondes anantos,
desejosa, quase humana,
que se arrepia ao contato
das penas dos papagaios que passam!
Árvore que tem o grande amor do vento
e que da sombra para o gado descansar.
Árvore estéril, árvore bela, árvore fresca,
árvore amante de todos os crepúsculos,
no solstício do inverno ou do verão,
Árvore do pensamento das outras árvores!

- Adalcinda Camarão,
do livro "Poesia do Grão-Pará" 


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SONETO I



No ramo a flor será sempre segredo
Moldando realidades no vazio,
Caminho de perfume, rosa e estio,
Crescendo além dos roseirais do medo.

Histórias das raízes sem enredo ...
Rolam frases de terra pelo rio,
As consoantes de luz tremem de frio
E as vogais orvalhadas morrem cedo.

No ramo a flor será sempre futuro,
Haste e corola nos confins do sonho,
Marcando de infinito a cor do muro ...

Sempre a cor sobre a senda debruçada,
E o perfume crescendo onde reponho
O sentido da flor despetalada.


Paulo Bomfim –
in Sonetos – l.959 -

domingo, 14 de setembro de 2014

A SOLIDÃO...



“A solidão não nos condena,
não nos culpa, não nos cobra.
Antes, nos redime e nos realimenta. 
E, nos momentos em que nos visita,
recupera-nos em identidade
com todo vento que sopra,
todo riacho que murmura, 
toda luz que enternece.
A solidão é isto: 
a lembrança de um outro mundo,
 um universo que acontece”.

Fernando Campanella

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Khalil Gibran



"Sinto-me como uma semente no meio do inverno,
 sabendo que a primavera se aproxima.
 O broto romperá a casca e a vida que ainda 
dorme em mim haverá de subir para a superfície,
 quando for chamada.
 O silêncio é doloroso, mas é no silêncio que
 as coisas tomam forma, e existe momentos em
 nossas vidas que tudo que devemos fazer é
 esperar.
 Dentro de cada um, no mais profundo no ser, 
está uma força que vê e escuta aquilo que não
 podemos ainda perceber. Tudo o que somos
 hoje nasceu daquele silêncio de ontem. 
Somos muito mais capazes do que pensamos.
 Há momentos em que a única maneira de aprender
 é não tomar qualquer iniciativa, 
não fazer nada. Porque, mesmo nos momentos de 
total inação, esta nossa parte secreta está 
trabalhando e aprendendo. 
Quando o conhecimento oculto na alma se manifesta,
 ficamos surpresos conosco mesmos, e nossos 
pensamentos de inverno se transformam em flores,
 que cantam canções nunca antes sonhadas.
 A vida sempre nos dará mais do que 
achamos que merecemos".

__Khalil Gibran__


AS POMBAS




Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
de pombas vão-se dos pombais, apenas
raia, sanguínea e fresca, a madrugada... 

E, à tarde, quando a rígida nortada
sopra, aos pombais, de novo, elas, serenas,
ruflando as asas, sacudindo as penas,
voltam todas em bando e em revoada... 

Também dos corações, onde abotoam. 
os sonhos, um por um, céleres voam, 
como voam as pombas dos pombais; 

no azul da adolescência as asas soltam,
fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, 
e eles aos corações não voltam mais!.


Raimundo Correia
- Maranhão (1860-1911)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

PINTURA




Onde se diz espiga
leia-se narciso.
Ou leia-se jacinto.
Ou leia-se outra flor.
Que pode ser a mesma.

As flores
são formas
de que a pintura se serve
para disfarçar
a natureza. Por isso
é que
no perfil
duma flor
está também pintado
o seu perfume.

Albano Martins, 
in "Castália e Outros Poemas"

domingo, 7 de setembro de 2014

OS VELHOS





Não é simples envelhecer.
Já um poeta o disse.
Peregrinos do tempo,
aprenderam, pelo olhar,
o caminho do trigo maduro,
o perfil dos navios
que partem sem regresso,
a mudança das estações do ano,
a curta duração das emoções.
Mas, quem se lembra da fadiga
dos seus braços, agora,
que é outono em suas mãos?
Quem fez do banco do jardim
um referente da morte,
o lugar onde a sua solidão se acoita?
Quem esqueceu, nas suas rugas,
a sábia maturidade da vida,
ou antes, um modo diverso
de olhar na direcção da noite?

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

JARDIM



Quando os ventos da primavera 
fustigam os jardins e as rosas 
se desfolham por terem a fragilidade 
do silêncio fica na terra um perfume 
tão inquietante que entontece 
o cetim das palavras.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

NOITE



Onde os vultos escurecem na exactidão do olhar 
desvanecendo a cor dos lírios 
começa o enigma da noite: 
sombra de uma sombra, 
esse outro modo de luz transfigurada.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013








SUGESTÕES



A chuva cai sobre as folhas
Enquanto o vento dobra a intenção das flores
O hálito da terra molhada
Avoluma sugestões no pensamento
Desenha na penumbra da memória
Restos de século, sonhos partidos
E imprecisas causas de sofrimento.
A chuva traz para o meu corpo
O vestido de uma mulher sem nome
Sepultada numa hora sem fixação.
O vento penteia meus cabelos
Com a forma dos ninhos em abandono
Olho o céu intumescido de tristeza
E reconheço que uma forma surgindo na neblina
Tem os meus ombros e o contorno da minha cabeça
Ouço o vento regressando das infâncias esquecidas
Trazendo as cantigas de roda
Contando as histórias de fadas
Quando a minha voz
Era a voz de menina.
Eu sinto a chuva cair com volúpia
Sobre o solo agradecido
E o vento levar para as distâncias novamente
Fragmentos de muitas vidas
E a evasão dos meus pensamentos.

Adalgisa Nery 
in Cantos da Angústia
 
 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O VENTO



O ar dá saltos no escuro,
se veste de imagens
pra o baile dos ecos.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964


SALMO DO SILÊNCIO



Tão grande é meu silêncio que ouviria
uma hóstia pousar sobre uma nuvem ,
a floração de estrelas no abismo
e o murmúrio de Deus amando o mundo.

Neste convulso silêncio escutaria
uma luz caminhando no infinito
e a tristeza de um anjo abandonado.

Tão puro meu silêncio que escuto
o solitário coração de Deus
fluindo angústia. E às vezes sinto
desdobrar-se em silêncio e mais silêncio
a grande voz a murmurar meu nome
na negra solidão inacessível.


Yttérbio Homem de Siqueira
de "Abismo Intacto"

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

GAIVOTAS



Para Mario Quintana

Bando de gaivotas
Cortam o infinito dos céus,
No seu vôo elas definem
O sentido maravilhoso e exato
Do que seja liberdade.
No seu vôo tranquilo
Parece às vezes
Que estamos diante
De uma orquestra magistral,
Onde são entoados salmos,
Salmos louvando a paz,
Canto sem silêncio
Em prol da libertação...
E o homem veste as roupagens da gaivota,
Tenta alçar o vôo,
Mas não consegue alcançar os céus
Nem a paz tão desejada,
As asas se partem
E ele cai por terra...


Olympiades Guimarães Corrêa 
- In Eterna procura