segunda-feira, 30 de junho de 2014

TARDE DE INVERNO




Sob o curvo cristal da imensidade
De um céu de transparência etérea e fria,
Em que do posto sol a claridade,
Azul e melancólica, radia,

Vemos o bosque, o rio, a amenidade
Das sombras, a ondulada pradaria,
Como um painel de estranha suavidade
E encantadora e rústica poesia.

Olha como o formoso fruto loiro
Salpica de pequenos pontos de oiro
Aquela verdejante laranjeira!

E além, além, do céu no alaranjado
Fundo se esbate e avulta o recortado
E sombrio perfil da cordilheira...

- Júlia Cortines 
em "Versos". 

ARCO IRIS



O coração se aperta.
Nem sabe se foi a lembrança de certo cair de tarde
que a memória subtraiu ao tempo, ou um reviver de luzes
entre horizonte e nada.
O coração se volta, há luzes ao longe, uma cidade aparece,
some-se, já é outra cidade.
Em qual delas habita e se redescobre o menino?
Em qual delas a vida se multiplica, as manhãs renascem,
os caminhos se desenvolvem num atlas inexistente e a imaginação arma
o seu mundo de mágicos? Em qual delas
a luz é luz, a sombra é sombra?
Não sabe.
Tantas coisas já se misturaram, ou se confundiram no tempo.
Algumas realmente vistas.
Outras apenas sonhadas, ou imaginadas. E como agora todas
a distancia se ordenam,
entrelaçam-se, formam,
fundidas, transfiguradas,
um só arco-íris!

Emílio Moura
In: Itinerário Poético


HORA LILÁS...



Hora lilás, da cor desta saudade
Que não me deixa mais o coração,
Hora em que a alma toda se me invade
Só de tristeza e de desolação ...

Hora em que eu lembro a minha pouca idade
E a minha tão cruel desilusão ...
Tudo se esvai na bruma da saudade,
Essa tão doce e triste cerração ...

Hora lias, da cor que me entristece,
Desta saudade que jamais esquece
Meu coração cansado de sofrer;

Hora em que eu vivo a vida já vivida,
Hora lilás, da cor da minha vida,
Pois é saudade só o meu viver.


Anrique Paço D’Arcos
in Poesias Completas

A VIAGEM



Como é bela uma asa em pleno voo...
Uma vela em alto-mar...
Sua vida toda ela! - está contida
Entre o partir e o chegar...

Mario Quintana 
in “A cor do Invisível”


quinta-feira, 26 de junho de 2014

A LUA


 
A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.
 
O mar jaz como um céu tombado.
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca, emerge
Das ondas-nuvens, toda nua.
 
 
Manuel Bandeira
in Estrela da vida inteira.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

IRMÃO, IRMÃOS



Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,

o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?


Carlos Drummond de Andrade,
in 'Boitempo'






segunda-feira, 16 de junho de 2014

POEMA INFINITIVO



A Dante Milano

Valorizar toda manhã de sol
como se a derradeira fosse.
Toda manhã de sol sobre a verdura
como se nunca mais houvesse.
Sentir que a vida é ainda boa e amiga
feito na antiga meninice.
E não temer a morte soberana
que se engalana para o enlace.


Fernando Py
in 70 Poemas Escolhidos


domingo, 15 de junho de 2014

TOMAR A SUBSTANCIA DO DIA




Tomar a substancia do dia,
a sua mágica substancia,
e levantá-la como um vaso,
desenhando no seu cristal
desejo, deslumbramento, esperança
na rosa que não é apenas flor,
mas diagrama da perfeição.

E de novo recomeçar,
porque é sempre um novo dia,
e o cristal da sua substancia
foge entre os nossos dedos,
e amarga em nossa boca,
e é puro quartzo de lagrima
que se prepara e forma e quebra
para sempre, na eterna solidão.   


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

FRAGMENTO




Eu falava no mar como alguém que recorda
seus pais. E amava todo o aparelho naval:
- o grosso cheiro de óleo, o contorno da corda,
o arrastar da corrente -  e águas, e brisa e sal.

Eu pisava no cais com marítimo passo.
Invejava o molusco em líquen pelas quilhas.
E minha alma era um grito às gaivotas no espaço,
e paixão de encontrar cabos, recifes, ilhas.

Que me diz hoje o mar, e que me diz o vento,
que me diz esse amor, sem lugar para mim?
De tudo se desprende um triste pensamento.
No mais longe horizonte avisto o breve fim.

Tudo igual, em redor. Tudo, de qualquer lado,
preso no seu limite, em seu tempo, em seu luto.
E o mar que eu via, o mar eterno, continuado,
grande por ser sozinho, imortal, absoluto...?   


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)





sábado, 14 de junho de 2014

O ELEFANTE


foto by Sebastião Salgado

O rugoso elefante pousa as patas cuidadosas nas pedras,
Pedras do imenso caminho, sinuoso e íngreme,
Entre as antigas muralhas e as altas frondes,
E vai subindo devagar para o palácio- fatigado patriarca.

O rugoso elefante tem apenas um velho manto amarelo,
Manto amarelo esgarçado e pobre, que não se parece
Com as coberturas soberbas, os brocados que outrora
Envolveram seus ancestrais, portadores de palanquins.

O rugoso elefante é um grande mendigo, e atrás dele vão e vêm
As crianças tênues, de dentes claros, que agitam raminhos
E com voz de brincadeira vão dizendo aos viajantes:
“Bakhshish! Bakhshish!Bakhshish!”
Para ganharem alguma pequena moeda negra.

Vão cantando assim. E seus dentes são mesmo pequenas pérolas,
E o elefante protege as crianças com sua sombra,
Levando-as na tromba, ri com os olhos, é um avô complacente,
Que vai morrendo entre bondades, alegrias, pobreza, lembranças.


Cecilia Meireles
In Poemas Escritos na Índia






HAIKAI



a  folhas tantas
o outono
nem sabe a quantas

Paulo Leminski,
in Toda Poesia




quarta-feira, 11 de junho de 2014

INSURREIÇÃO



não submeto meus silêncios aos 
gritos de quem perdeu o hábito do futuro 
sou como uma gota qualquer de plenitude 
em um universo que escuta e permanece mudo. 

Lau Siqueira, 
in Texto Sentido. 


terça-feira, 10 de junho de 2014

O MUNDO DE DEUS



Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que 
os primeiros astronautas russos, os quais declararam, 
ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, 
deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas
metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac:
“O deserto é Deus sem os homens”.

Mario Quintana,
Caderno H - 1973







segunda-feira, 9 de junho de 2014

NOITE FRIA , GELADA



''Noite fria,gelada''

e um fogo ardente, sem temores
crepita na lareira.

Estala a lenha
e
o aconchêgo é doce
o tempo não passa
e o estalido faz brasa!

Assim é a ventura
das coisas passadas:
queimou-se a candura
e cinzas acabadas.


Alvina Tzovenos
In Sonhos e Vivências

FLOR PEQUENINA



Flor pequenina,
Aberta no meio do lindo canteiro,
Porque será
Que, sendo tu tão pequenina,
Foi a ti que vi primeiro?
À tua volta,
Flores maiores,
Mais belas, talvez e perfumadas,
Quase te escondem ...
Tímida,
Como que te encolhes no meio delas;
E contudo,
Foi a ti que vi primeiro:
Só por seres pequenina, decerto!
Flor pequenina do meu jardim:
Deixa-me ser, como tu,
Pequenino!

Joaquim do Carmo
De: Amanhecer pelo Fim da Tarde



DÚBIO



Um dia, alma criança,
do vento indaguei a idade
e foi o tempo de meus ouvidos
o que obtive como verdade.

Do sol, a mesma questão lançada,
como solução veio-me o tempo
de meus olhos, de minha pele
ao calor e à luz exposta.

Estranhas, dúbias respostas:
o universo a um estalar de minha finitude
então se desmancha, e passa?

Ou trago, dos cumes da criação,
de tudo que brota, rebrota,
a mais irrestrita,
a mais eterna proposta?

Fernando Campanella

sábado, 7 de junho de 2014

FOLHAS




Repara: sem vento as folhas
são como o sono apenas.
Corpos ao relento,
que da morte se esquecem.

Albano Martins,
in Escrito a vermelho

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O GUARDADOR DE REBANHOS


"Se às vezes digo que as flores sorriem
Se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque sou só essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.
É a Natureza a despertar!"

Fernando Pessoa -
(Alberto Caeiro) in O Guardador de Rebanhos


O POEMA




Uma formiguinha atravessa, em diagonal,
a página ainda em branco. Mas ele, aquela
noite, não escreveu nada. Para quê? Se por
ali já havia passado o frêmito e o mistério
da vida...

Mario Quintana,
in Sapato Florido






LUAR PÓSTUMO




Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.

O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.

Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

domingo, 1 de junho de 2014

A BALADA DAS FOLHAS



No crepúsculo de gaze
E ouro, anda alguém a cantar
Uma cantiga que é quase
Um choro humano, pelo ar...
Pensativo, os olhos ponho
Nas folhas, - vida que vai
A extinguir-se, sonho a sonho, 
Em cada folha que cai...

A primeira é verde e é linda.
Porque o vento a desprendeu ?
Não tinha vivido ainda,
Não tinha amado e morreu.
Vento do Destino avança,
E num soluço, num ai,
Cai um mundo de esperança
Na folha humilde que cai.

A segunda é a folha morta, 
Passado... Desilusão...
Mal o vento os ramos corta, 
Ela adormece no chão...
É a saudade, - folha da alma –
Que no tormento se abstrai
E vive da morte calma
De cada sonho que cai.

OFERENDA:

No crepúsculo indeciso
Da vida, me martirizo
Por um sonho que se esvai...
Caem folhas... Chorei !...
Há uma lágrima, um sorriso...
Em cada folha que cai.


Olegário Mariano
in 'Poemas de amor e de saudade'
1.932.