segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A ROMÃ



Mal se confrange na haste a corola sangrenta 
E o punício vigor das pétalas descora. 
Já no ovário fecundo e intumescido, aumenta 
O escrínio em que retém os seus tesouros. Flora! 

E ei-la exsurge a Romã. Fruta excelsa e opulenta 
Que de acesos rubis os lóculos colora 
E à casca orbicular, áurea e eritrina ostenta 
O ouro do entardecer e o paunásio da aurora! 

Fruta heráldica e real, em si, traz à coroa 
Que o cálice da flor lhe pôs com o mesmo afago 
Com que a Mãe Natureza os seres galardoa! 

Porém a forma hostil, de arremesso e de estrago, 
Lembra um dardo mortal que o espaço cruza e atroa 
Nos prélios ancestrais de Roma e de Cartago! 


Emílio de Menezes











GOTA D’ÁGUA



Olha a paisagem que enlevado estudo!... 
Olha este céu no centro! olha esta mata 
E este horizonte ao lado! olha este rudo 
Aspecto da montanha e da cascata!... 

E o teu perfil aqui sereno e mudo! 
Todo este quadro que a alma me arrebata, 
Todo o infinito que nos cerca, tudo! 
D'água esta gota ao mínimo retrata!... 

Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo! 
Vê o firmamento sobre nós baixando; 
Vê de que luz suavíssima me inundo!... 

Vai teus braços, aos meus, entrelaçando, 
Beija-me assim! vê deste azul no fundo, 
Os nossos olhos mudos nos olhando!... 


Emílio de Menezes

O PEIXE



Do mar, ao fundo, o sol, em misteriosa aurora, 
Dos corais da Abissínia a floresta alumia, 
Banhando, à profundez da tépida bacia 
A fauna que floresce e a palpitante flora. 

E tudo o que do oceano o iodo ou o sal colora 
A anêmona marinha, as algas de haste esgula, 
Põe suntuoso desenho em púrpura sombria 
Na pedra verminosa onde o pólipo mora. 

Amortecendo o brilho à retulgente escama, 
Um grande peixe vaga entre a enlaçada rama; 
Da água as ondas, em torno, indolente desfalda. 

Mas súbito ele agita a barbatana ardente, 
E à tona do cristal azulado e dormente, 
Corre um rastilho de ouro e nácar e esmeralda! 


Emílio de Menezes


FESTA NOTURNA




O sol
vestiu o entardecer
com rendas douradas,
violetas e azuis...
Para a festa da noite,
a lua cheia
transformou-se
em prateada medalha
e enfeitou
o peito redondo do infinito...

Adélia Maria Woellner


sábado, 28 de setembro de 2013

TARDE NA PRAIA


A Leal de Souza 

Quando, à primeira vez, lhe vi a grandeza, 
Foi nos tempos da longe meninice. 
E quedei-me à mudez de quem sentisse 
A alma de pasmos e terrores presa. 

Depois, na mocidade, a olhá-lo, disse: 
É moço o mar na força e na beleza! 
Mas, ao dia apagado e à noite acesa, 
Hoje o sinto entre as brumas da velhice. 

Distanciado de escarpas e barrancos, 
Vejo a morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo 
Das grandes fúrias e os hostis arrancos. 

E ao contemplá-lo assim, tristonho digo, 
Vendo-lhe, à espuma, os meus cabelos brancos: 
O velho mar envelheceu comigo! 


Emílio de Menezes,
in  Últimas rimas (1917). 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

SENHOR LIBERTAI-NOS



«Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres»


Sophia de Mello Breyner Andresen
in: Geografia 1967

PAISAGEM




Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exaltação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner
In ‘Poesia’ (1944)

PAULO BOMFIM



Todas as coisas do Universo tem sua linguagem.
 Só a poesia pode guardar em sua essência a 
voz colorida das flores e as cismas do dia que morre.

Paulo Bomfim
de 'O colecionador de minutos'.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

CONVERSA COM O VENTO




Vento amigo ,
Porque não vens?
E não mandas esta chuva embora?
Ela cai a tantos dias,
Impertinente e sem cessar!...

Vento amigo,
Porque não vens
ou não mandas a brisa em teu lugar?!

Não vês?
Os campos estão alagados,
A lavoura à espera da colheita.
Os lírios do campo,
há muito estão caídos pelo chão!

Vento amigo,
As crianças querem brincar,
correr pela praia...
brincar com a areia,
sentir de novo o calor da vida!

Mas tu não me ouves,
embora eu te suplique...

já vi que não és meu amigo,
gostas de castigar a alma da gente!...


Olympiades Guimarães Correa
de Neblina do Tempo -1.996-

terça-feira, 24 de setembro de 2013

BOSQUE DAS HORTÊNSIAS




Naquela minha ruazinha tão amiga
Existia um bosque tão florido,
Chamado Bosque das Hortênsias
Brancas, azuis e lilases!...

Havia um banco de mármore vazio,
Acolhedor e amigo,
Que parecia estar sempre
À espera de um coração solitário
Ou de um casal de namorados...

Várias vezes sentei-me naquele banco,
Confabulei comigo mesmo,
Monologando minhas confidências
E mirando, ao redor, as hortênsias que floriam...

Hoje,
O local mudou tanto!
O tal bosque já não existe mais.
As hortênsias deixaram de florir
E aquele banco
Tão terno e amigo...
Para onde o levaram?
Só Deus sabe...


Olimpyades Guimarães Corrêa 
Neblina do Tempo – 1.996 –

GAIVOTAS



Para Mario Quintana

Bando de gaivotas
Cortam o infinito dos céus,
No seu vôo elas definem
O sentido maravilhoso e exato
Do que seja liberdade.
No seu vôo tranquilo
Parece às vezes
Que estamos diante
De uma orquestra magistral,
Onde são entoados salmos,
Salmos louvando a paz,
Canto sem silêncio
Em prol da libertação...
E o homem veste as roupagens da gaivota,
Tenta alçar o vôo,
Mas não consegue alcançar os céus
Nem a paz tão desejada,
As asas se partem
E ele cai por terra...


Olympiades Guimarães Corrêa 
- In Eterna procura


domingo, 22 de setembro de 2013

PRIMAVERA



Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos
(Paraíba- 1884-1914)

sábado, 21 de setembro de 2013

EUGÉNIO DE ANDRADE


"Gosto das palavras que sabem a terra, a água,
aos frutos de fogo do verão, aos barcos no vento;
gosto das palavras lisas como seixos, rugosas 
como pão de centeio. Palavras que cheiram a feno 
e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol."

Eugénio de Andrade, 
in "Rosto Precário"




sexta-feira, 20 de setembro de 2013

HAICAI



Mistura de tintas
nas flores de primavera.
Natureza em obras.


Delores Pires
In "Garoa de Outono"

FRUTIDORO



Fruto, depois de ser semente humilde e flor,
Na alta árvore nutriz da Vida amadureço.
Gozei, sofri, - vivi! Tenho no mesmo apreço
O que o gozo me deu e o que me deu a dor.

Venha o inverno, depois do outono benfeitor!
Feliz porque nasci, feliz porque envelheço,
Hei de ter no meu fim a glória do começo:
Não me verão chorar no dia em que me for.

Não me amedrontas, Morte! o teu apelo escuto,
Conto sem mágoa os sóis que me acercam de ti,
E sem tremer à porta ouço o teu passo astuto.

Leva-me! Após a luta, o sono me sorri:
Cairei, beijando o galho em que flui flor e fruto,


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

PRIMAVERA



Ouro flutuando
pelos ramos desfolhados
nos ipês floridos.


Delores Pires

HAICAI




Espetada no ar
borboleta colorida
integra a paisagem.

Delores Pires
Passeio ao Luar (2002)

EU VI UMA ROSA



Eu vi uma rosa
- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de mei-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.

A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe da glória
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.


Petrópolis, 1943
Manuel Bandeira 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

AL BERTO



(...)
aprendi que nenhum viajante vê o que os outros viajantes,
ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo é único,
não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos,
purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil;
e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz,
os astros, as águas, os peixes e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada;
sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue,
mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo,
se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele,
o una de novo ao Universo.

Al Berto
em Anjo Mudo

VOAR!



Deve ser bom voar! Abrir as asas,
fechar os olhos e partir sem rumo,
pairar sobre as cidades, sobre as casas,
como pássaro, estrelas, nuvem, fumo...

Deve ser bom voar! Erguer os braços
e acima dos telhados e dos ninhos,
esquecer os sinais de inúteis passos,
fugir ao pó de todos os caminhos...

Mas onde as asas para assim voar,
para subir às nuvens e às estrelas?
As dos homens, são asas de matar...
...e as dos anjos, quem poder pretendê-las ?


Fernanda de Castro
em Trinta e Nove Poesias – 1.941 – 

OLHAR PARA BAIXO



Aprendo mais com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
é um olhar para ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado, como uma
barata - cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão -
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.

Manoel de Barros
in "Retrato do artista quando coisa" 

BERNARDO SOARES


(...) Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores
e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, 
vagos cantos que componho enquanto espero.

(...)
Bernardo Soares
in Livro do Desassossego

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

POEMA DO AMANHECER



O SOL,
ignorando totalmente
a presença da
cortina branca,
tocou-me
levemente
os olhos
com seu beijo de luz!

Warllem Silva
In: Infinitude da Graça.

MICROCOSMO



Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas...
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

domingo, 15 de setembro de 2013

ALEGRIA



Há alegria no sol que num triunfal rompante
como um broto de luz que rompesse as entranhas
da terra, - surge além pelas sombras, distante,
a incendiar como um louco a encosta das montanhas!

Há alegria no mar onde as conchas apanhas!
Na noite mansa e azul, silenciosa e brilhante,
e nas nuvens que no ar tomam formas estranhas,
nas mãos ágeis do vento irrequieto e inconstante!

Há alegria nas ruas, nas flores, - nas aves
que enchem ramos e céus de melodias suaves,
e em meus olhos tristonhos refletindo os teus...

Alegria não há, no entanto, mais completa
que essa que canta e ri no coração de um Poeta
quando ao findar de um poema se imagina Deus!


JG de Araujo Jorge
in "Amo!' (1938)

ROSAS



Frágeis filhas da Aurora e do Mistério
Rosas que despertais virgens e frescas,
Sorrindo entre os espinhos e as folhagens,
Nos roseirais sadios e viçosos.

Rosas débeis, que os ventos assassinaram,
Sois a forma e a expressão do próprio efêmero.
Na luta natural incerta e cega.
Sois o instante de Pausa e Sutileza.

Rosas que as mãos da noite despetalam,
Sois o triunfo do Amor e da Harmonia,
Sois a imagem tranqüila da Beleza.

Rosas que alimentais meu olhar enfermo,
Rosas, vós da terra humilde e escura
Um gesto puro, um alto pensamento!


Augusto Frederico Schmidt 
In ‘Um Século de Poesia’

sábado, 14 de setembro de 2013

A PEDRA



Deus fez a pedra rude, a pedra forte,
e depois destinou: -Serás eterna.
Mostrarás a altivez de quem governa,
Não ousará tocar-te a própria morte.

E a pedra julgou linda a sua sorte.
Foi palácio, foi templo, foi caverna,
foi estátua, foi muralha, foi cisterna, 
viveu sem coração, sem fé, sem norte.

Mas viu morrer o infante, o monge, a fera,
o herói, o artista, a flor, a fonte, a hera,
e humildemente quis também morrer.

Não grita, não se queixa, não murmura,
guarda a mesma aparência hostil e dura
mas sofre o mal de não poder sofrer.

FERNANDA DE CASTRO

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

ENCONTROS QUE NÃO MARCASTE



Encontros que não marcaste
em ruas que desconheces
eu esperarei
até que as noites deslizem
sobre mim
e eu fique transformada
em árvore.

Isabel Meyrelles,
In Poesia

UM PASSEIO NA MATA



Ouço, num primitivo espanto,os gritos mais insólitos.
Não sei o nome de nenhum desses pássaros, de nenhuma 
dessas árvores. Olho, agora, esta flor: apenas sei 
que é amarela. Meu pensamento, ou seja lá o que for,
é simplesmente composto de adjetivos, como nos
primeiros dias da Criação.

Mario Quintana,
in Caderno H

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

DA POESIA



9.

Ó poesia,
flamboyant que em silêncio pomos
no espaço em que já não existe
nenhum flamboyantl !
Ela é a lágrima da lágrima
como um filete de água
na prenhez inocente das manhãs.
É o gesto de afastarmos as palavras ásperas
para que não ressuscitem no terceiro dia.
É a infantaria
dos diálogos perdidos.
Ou o lavor
da sobrecanção que vem pousar
nas praias, junto ao mar.


Artur Eduardo Benevides
(do livro Noturnos de Mucuripe & Poemas de Êxtase e Abismo,

DA POESIA


1.

A poesia
é um pequenino veio nas colinas
a se espalhar por vésperas e matinas
até encontrar a solidão do mar.
E a solidão somos nós.
O mar:
o pranto e a voz
dos que Jamais puderam regressar.

Artur Eduardo Benevides
(do livro Noturnos de Mucuripe & Poemas de Êxtase e Abismo,
(1992)

MOMENTO



O vôo dos pássaros prolonga
a beleza das tardes.
E há, em nosso olhar,
um vasto
dealbar.
Tudo, em grandeza, torna-se possível.
O visível nasce do invisível.
As nuvens acenam, de repente.
E aquilo que emergiu
é o emergente.

Artur Eduardo Benevides,
In: Elegia Setentã e Outros Poemas de Entardecer

HOUVE UM TEMPO...



Houve tempo em que o bosque, o rio e o matagal,
A terra e qualquer cena irrisória,
Pareciam-me na memória
Envoltos em luz celestial,
Qual sonho, frescor e glória.
Nada é como outrora –
Tudo que minha visão percebia,
Seja de noite, seja de dia,
As coisas que via, já não as vejo agora.

William Wordsworth 

PLASMA


 
Apanhei à profunda noite
uma mancheia de estrelas límpidas
e amassei-as com o barro humilde
ainda cheio de telúricas pulsações.
E assim criei o plasma novo
que meus dedos pediam
para a modelagem das minhas
formas inaugurais...

Tasso da Silveira 

UM PASSARINHO CANTA



Um passarinho canta
para o canto perder-se.
 
Para o canto fundir-se
no éter puro e sereno,
no silêncio das coisas,
no mistério dos seres.
 
Um passarinho canta
apenas porque é vida:
a vida é apenas canto,
canto efêmero.

 
Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes

AMÉM



Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também!


A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?


Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus. . . E ninguém 
entende o que se está contando
e a quem. . .


Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém. 



Cecília Meireles
In: Vaga Música

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES




Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo,
in "Todos os Poemas",

terça-feira, 10 de setembro de 2013

ÚLTIMA CANÇÃO



Deus,
eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo,
Deus,
eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.
Deus,
eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
e permanência.

Lya Luft
In Secreta mirada e outros poemas

ALGUÉM INVADE A TERRA...



" Alguém invade  a  terra , a  torre ,  a ilha  onde  a  gente
pensava  estar  imune  ao  susto . Somos  atropelados  pelo
inesperado , com o qual não  sabemos  o  que  fazer .
São  dádivas , são bençãos  de  deuses  que sorriem  das
nossas  trapalhadas , e sabem que é melhor  o sobressalto
de  estar  vivo  do que o entorpecimento das  emoções ."
 
 
Lya Luft 
in  Secreta  Mirada  e outros poemas
 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS



Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros
In:"Memórias Inventadas"

AS BENÇÃOS



Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.

Manoel de Barros

NINGUÉM




Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina ao sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Manoel de Barros
In Ensaios Fotográficos

MANOEL DE BARROS



***

Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
Sou qualquer coisa judiada de ventos.
Meu fanal é um poente com andorinhas.
Desenvolvo meu ser até encostar na pedra.
Repousa uma garoa sobre a noite.
Aceito no meu fado o escurecer.
No fim da treva uma coruja entrava.


Manoel de Barros —
in: Os Deslimites da Palavra

COMO O RUMOR



Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto

Sophia Mello Breyner Andresen
In Poemas Escolhidos





OS DIAS DE VERÃO



Os dias de verão vastos como um reino 
Cintilantes de areia e maré lisa 
Os quartos apuram seu fresco de penumbra 
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo 

Tempo é de repouso e festa 
O instante é completo como um fruto 
Irmão do universo é nosso corpo 

O destino torna-se próximo e legível 
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros 
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem 

Como se em tudo aflorasse eternidade 

Justa é a forma do nosso corpo 


 Sophia de Mello Breyner Andresen
In Dual, 1972 

POEMA



A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Poemas Escolhidos





OS AMIGOS



Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta e impetuosa
Juventude antiga -
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Musa, 1994


domingo, 8 de setembro de 2013

POEMA DA ESPERANÇA



Lá, onde Tu moras,
Deve ser um país tão luminoso
Que, de olhos extintos,
Se possa ver...
Deve ser um país sem dias e sem noites...
Sem ontens e sem amanhãs...
País maravilhoso da Beleza perfeita,
Que só habitam
Almas extraordinárias 
De seres e de coisas...
Lá, onde Tu moras,
Não há mais nada do que se sabe,
Nem do que se é...
Lá, onde Tu moras,
Dize que um dia me acolheras 
Como um Bem-Amado à sua Bem-Amada...
Dize que chegarei, um dia,
Ao teu Reino...
- Porque eu estou mortalmente enferma
Da tristeza e da penumbra
Daqui...
Eleito, ó Eleito,
Dize que me deixaras ficar
Lá, onde Tu moras,
Nesse país tão luminoso
Que, de olhos extintos,
Se pode ver... 



Cecília Meireles
In: Poema dos Poemas

RUBIS



A terra escondeu nas entranhas
as suas lágrimas de sangue
para que ninguém as pudesse ver.

Jorge Sousa Braga 
in O Poeta Nu, 2007


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

PAISAGEM



Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exaltação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


Sophia de Mello Breyner Andresen 
In ‘Poesia’ (1944)