sábado, 20 de dezembro de 2014
"NOSTÁLGICA N.º 2"
Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza em meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás
Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida
NÃO SEI
Não sei onde começa o céu e nem acaba.
O infinito se dissolve como números na névoa.
Vou-me, porque a voz que chama é a mesma que chamava.
Será a mesma, acaso, a mão que ainda me leva?
Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
ORÁCULO
Quieta coruja do bosque negro,
onde o azul-indigo e o verde gaio?
Nos teus rios? No monte grego?
Ou na Fenicia praia?
Agora, tarde. Mas, ontem, cedo.
Árvore exausta. Cansado remo.
Clássica luz de maio.
Ah! fuga antiga! Nas águas crespas,
oscilam juntos Polibio e Laio.
Sempre serpentes bebendo
estrelas.
E um vento que desmaia.
Dança Eufrosina por cinzas Tênues.
E a transparente sombra de Tália
move na areia seus vãos desenhos.
-Só nas nuvens Aglaia!
Cecília Meireles,
in Vaga Música
sábado, 13 de dezembro de 2014
ASSIM
Assim como um cheiro de curral e estrume,
mugidos nas pastagens, fresco
fluir de água (de olhos d’água), assim
como se em sítios úmidos, nos canteiros
em socalcos, o verde das folhagens,
os frutos já de vez, eis que agora
o que nos vem é este gostoso vento
rural, vento molhado das manhãs
que se banham nuas nas águas sem malicia.
Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece
CONTEMPLAÇÃO
Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.
Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.
Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.
Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde somos todos estrangeiros?
Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.
Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.
Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.
Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, vôo,
- sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
- mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?
Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos
quando já foram sofridos.
Tão pouco somos, - e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.
Entre o desejo do itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga
mais que o itinerário e o desejo.
Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
Confundiram-se.
E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência...Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.
Não acuso nem perdôo.
Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?
Eu não estava presente, quando formaram
a voz tão frágil dos pássaros.
Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?
Cecília Meireles
In: Mar Absoluto
domingo, 30 de novembro de 2014
O MUNDO DO SONHO
O mundo do sonho é silencioso
como o mundo submarino. Por isso
é que faz bem sonhar.
Mario Quintana
in Caderno H
RUA
Procuro a rua
que ainda me resta:
é longa, é alta,
não é essa.
Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta.
Em cada esquina
havia festa:
é clara, é vasta,
não é essa.
Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta.
Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.
Cecília Meireles,
in Poesia Completa
Sonhos
CÂNTICO I
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
te ponha em tudo,
como Deus.
Cecilia Meireles
In: Cânticos
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."
Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.
Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?
Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?
Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.
Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?
Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?
Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.
Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
"SONS PERDIDOS"
Vês o céu, a campina, a natureza,
Este campo infinito de poesia?
Vês as nuvens doiradas que se agitam
Ao cair da neblina em pleno dia?
Vês as garças que pairam sonolentas
Nesta praia isolada que me inspira?
Pois, cantor, o que vês, tudo pertence
Da minh'alma sonora à rude lira.
Serenatas de brisa - vozes soltas
De folhagem bolida pelo vento,
tudo n'alma me cai como um idílio,
Tudo acolhe a sorrir meu pensamento.
Amo a terra somente pelas flores,
Pelas brumas azuis do alvorecer,
Pelas asas gentis das borboletas
Que me fazem de inveja estremecer.
Amo o céu à tardinha pelas cores
Que ele ostenta a sorrir ao pôr-do-sol;
Amo os raios da lua em noite bela...
Amo as nuvens fagueiras do arrebol.
Amo as brisas do mar - as brisas mansas
Que me inspiraram sonhos de alegria;
Que embalsama a terra onde adormeço
Ao balanço da rede em pleno dia.
A minha alma é formada de harmonias
E só vive de luz, de vibrações;
Como a flor que viceja à beira d'água,
Ela vive a cantar nas solidões.
Júlia da Costa
em 'Flores Dispersas'
CANÇÃO DO EXÍLIO
Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...
Dantas Mota
In Planície dos Mortos
terça-feira, 25 de novembro de 2014
domingo, 23 de novembro de 2014
COMO UMA FLOR VERMELHA
À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.
Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.
Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Poesia
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Sophia de Mello Breyner Andresen
AS NUVENS
As nuvens
não têm preocupação estética.
Sou eu
que as organizo
para meu regozijo esperto.
Elas simplesmente se desfazem
e nem disto sabem
mas eu as estudo, eu as apuro
como Turner
e alguns poetas
que organizaram o entardecer.
A natureza
não tem preocupações morais.
A natureza não mata
nem odeia.
Ou melhor:
mata e ama
de igual maneira
e todo movimento
é desejo
de viver.
A morte
é apenas uma forma estranha
da vida
se refazer.
Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha
MINHA TERRA
Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha.
– Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha.
Correi pras bandas do sul:
Debaixo de um céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil.
– É uma terra de amores,
Alcatifada de flores,
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de abril.
Tem tantas belezas, tantas,
A minha terra natal,
Que nem as sonha o poeta
E nem as canta um mortal!
– É uma terra encantada
– Mimoso jardim de fada –
Do mundo todo invejada,
Que o mundo não tem igual.
Casimiro de Abreu (1839-1860)
in Primaveras
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
APONTAMENTO
Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!
Subo por essas horas
solitária e sincera,
e encontro, exausta e pura,
minha alma que me espera.
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
domingo, 9 de novembro de 2014
TRÊS ORQUÍDEAS
As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus olhos roxos.
Elas são alvas, toda pureza,
com uma leve mácula violácea para uma pureza de sonho triste, um dia.
Que dia? Que dia? Dói-me a sua brevidade.
Ah! não vêem o mundo. Ah! não me vêem como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o terno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno.
As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Que elas não vêem o mundo, que o mundo as visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu desaparecimento.
E aspira sobre elas a gentileza igualmente frágil, a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha vida.
Durai, durai, flores, como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas,
que escrevo para perdurares em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de alabastro.
Cecília Meireles
In "Flor de Poemas"
MARINHA
O BARCO é negro sobre o azul.
Sobre o azul, os peixes são negros.
Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.
Sobre o azul, os peixes são negros.
Negras são as vozes dos pescadores,
atirando-se palavras no azul.
É o último azul do mar e do céu.
A noite já vem, dos lados de Burma,
toda negra,
molhada de azul.
- a noite que chega também do mar.
Cecilia Meireles.
In Poemas escritos na ìndia
CAVALO BRANCO
Cavalo branco
de crinas de ouro
buscando o trevo
entre as margaridas,
que é da fortuna
da donzelinha,
solta da sela
em várzeas antigas?
E as velhas fontes
contam histórias,
tristes, risonhas,
de terras perdidas,
e as lavadeiras
detrás dos muros
cantam, muito alto,
chorosas cantigas.
Cavalo branco
de crinas de ouro,
mostra-me o trevo
entre as margaridas!
Cecília Meireles
In: Canções
A CHUVA
O bom da chuva é que parece que não tem fim...
Nenhuma das outras coisas me dá essa resignada,
tranquilizadora sensação de fatalidade.
Mario Quintana,
in Caderno H
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
PALMEIRA IMPERIAL
Mostras na glória um coração mesquinho...
Numa beleza esplêndida, que aterra,
Passas desencadeando um ar de guerra,
Sem deixar um perfume no caminho.
Como a palmeira, não susténs um ninho!
Não és filha, mas hóspede da Terra;
Subjugando a planície, na alta serra,
- Cruel às aves, seca de carinho.
Há no deslumbramento do teu porte
Tédio, orgulho, desdém: talvez saudade
De outra vida, ambição talvez da morte...
Como a palmeira, tens a majestade,
E dela tens a desgraçada sorte:
A avareza da sombra e da piedade.
Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)
domingo, 2 de novembro de 2014
RIO GRANDE ACIMA*
Ouro, prata, cascalho, cal, barro.
O rio
e a flora Vida que acolhe e afronta.
Água, areia, árvores, frutas, faro.
O rio
e a fauna que há séculos alimenta.
Rumo País acima sobre eras além.
O rio,
seus braços, boca e veia
amazônica - no bravo dorso de Belém.
Avanço com o grande rio;
avisto Atlântico oceano - delta além.
Avanço com o grande rio,
vomito peixes, estrelas, rimas fáceis.
(Saúdo a bendita companhia dos botos)
Avanço com o grande rio,
seu visceral odor e perene casto lavor.
Avanço com o grande rio,
suas artérias abertas; sua cara dor.
Enveredo por sua atávica coreografia;
sua capilaridade que revela orgânico plano.
Armo redes, deito esteiras rente ao mar:
naquele espoucar de estrelas, aspiro
cometas insanos em sua trajetória sã.
Olhar e ver; avançar com o grande rio,
fauna e floresta afoitas, a força do Verde,
que tudo abarca - nunca é tarefa vã!
*Jairo De Britto,
em "Dunas de Marfim"
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
PEQUENO POEMA DE APÓS CHUVA
Frescor agradecido de capim molhado
Como alguém que chorou
E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada
alegria
Por ter a vida
continuado...
Mario Quintana
In Baú de Espantos
ORAÇÃO DA NOITE
Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, - embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...
Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!
Que o sonho deite bênçãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.
Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!...
Cecília Meireles,
in Nunca Mais e Poemas dos Poemas
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
IMAGEM
És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...
A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...
Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas
MICROCOSMO
Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;
A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;
E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;
E todo o cosmos em perpétuas flamas...
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!
Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)
MISTÉRIO
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.
Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…
Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!
Florbela Espanca
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
RIO ABAIXO
Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga...
Quase noite. Ao saber do curso lento
Da água, que as margens em redor alaga,
Seguimos.Curva os bambuais o vento.
Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
Desmaia agora o acaso. A noite apaga
A derradeira luz do firmamento ...
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
Um silêncio tristíssimo por tudo
Se espalha. Mas a lua lentamente
Surge na fímbria do horizonte mudo:
E o seu reflexo pálido, embebido
Como um gládio de prata na corrente,
Rasga o seio do rio adormecido.
Olavo Bilac
In Melhores Poemas
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
MEMÓRIA ATÁVICA
Em algum lugar
deste infinito mistério
- que é meu ser -,
a emoção primitiva
brilha
e reflete
a memória de todas as eras.
Adélia Maria Woellner
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
ATENTA AOS ENCANTOS DO JARDIM...
"Atenta aos encantos do jardim das magias,
abandonei-me no tempo, diluí-me no espaço.
Fiz-me roseira, só para compreender que,
os espinhos no caule, são escada para alcançar a Flor."
Adelia Maria Woellner
domingo, 19 de outubro de 2014
FLORAL
É isso.É primavera.
estou feliz, em febre.
Outros
politizam suas dores.
Eu
me polenizo
ou polemizo
- com as flores.
Affonso Romano de Sant'Anna,
in Poesia Reunida
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
ALONGO-ME
O rio nasce
toda a vida.
Dá-se
ao mar a alma vivida.
A água amadurecida
a face
ida.
O rio sempre renasce.
A morte é vida.
JOÃO GUIMARÃES ROSA
In Magma, 1936
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
RESQUÍCIO
Às vezes
a dor de chuvas passadas
cai em mim tão fina,
reelaborada,
a ponto de não ser eu
assim mais que uma bolha
na espuma da tarde
molhada.
Fernando Campanella
CHOVE DENTRO DA MINHA ALMA
Ouço bem a chuva que dentro da minha alma cai.
Debruço-me num tempo erguido pela nostalgia
e a chuva é mais fria.
Procuro em meu coração uma tristeza qualquer;
talvez assim encontre aquecimento
e mude o ritmo da chuva
por algum momento.
Busca em vão.
A chuva continua em compasso firme e lento
desacompanhada de vento.
Procuro em meu coração
um segundo de descanso
e talvez de exultação;
novamente recorri em vão.
Chove dentro da minha alma
o pranto das noites frias
e das inumeráveis tristezas sem razão.
Adalgisa Nery
sábado, 4 de outubro de 2014
I
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando.
Mario Quintana,
in A rua dos catavaentos
CANÇÃO DE OUTONO
O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida…
Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo…
Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma…
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!
Mario Quintana
in Canções
VERANICO
Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos.
A cidadezinha modorreia...A tarde
Avança, lentamente, como o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga
O poema empaca, o poeta adormece
De chatice
A vida continua indiferente.
Mario Quintana,
in: Preparativos de Viagem
FAMÍLIA DESNCONTRADA
O verão é um senhor gordo sentado na varanda
reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho
tiritante. O outono, um tio solteirão.
A primavera, em compensação, é uma menina
pulando corda.
- Mario Quintana,
in: Caderno H, 1973.
HAI-KAI DE OUTONO
Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?
Mário Quintana,
in Preparativos de Viagem
PASSARINHO NA TARDE DE SÁBADO
Como se fosse o primeiro passarinho do mundo
Na primeira manhã do mundo,
Voa e revoa
Por cima da praça modesta
Onde velhinhos sentados
Fazem um pouco de sesta.
Voa e revoa, inquieto,
Por cima da gente que passa
Apressada,
Por cima das árvores
Por cima da estátua eqüestre
Que está no meio da praça.
Esvoaça,
Esvoaça
Alegre!
Passarinho eu te acho uma graça...
Só uma coisa te peço, passarinho de
minh'alma:
Não me faças nenhum descuido em cima
do cavalo da estátua!
Mario Quintana
In Preparativos de Viagem
SER E ESTAR
A nuvem, a asa, o vento,
a árvore, a pedra, o morto...
tudo o que está em movimento,
tudo o que está absorto...
aparente é esse alento
de vela rumando um porto
como aparente é o jazimento
de quem na terra achou conforto...
pois tudo o que é está imerso
neste respirar do universo
- ora mais brando ora mais forte
porém sem pausa definida -
e curto é o prazo da vida...
e curto é o prazo da morte.
Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural
SILÊNCIO.SOLIDÃO SERENIDADE.
"Quero morrer na selva de um país distante...
Quero morrer sozinho como um bicho!
Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o seu poeta.
Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no céu!
E todos estes que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!"
Mario Quintana
Esconderijos do Tempo - 1980
O VENTO E A CANÇÃO
para Tania Franco Carvalhal
Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.
E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.
Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.
E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer
Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer...
- é que o voo do poema não pode parar.
Mario Quintana
In 80 Anos de Poesia
CHÃO DE OUTONO
Ao longo das pedras irregulares do calçamento
passam ventando umas pobres folhas amarelas em pânico,
perseguidas de perto por um convite-de-enterro,
sinistro,tatalando ,aos pulos, cada vez mais perto,as
duas asas tarjadas de negro.
Mario Quintana
In Sapato Florido
PAUSA
Na pauta das horas há um instante de
grave, serena pausa...
É quando o último grilo parou de cantar...
E ainda não começou o canto do primeiro
pássaro...
Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho.
OS PÉS
Meus pés no chão
Como custaram a reconhecer o chão!
Por fim os dedos dessedentaram-se no lodo
macio, agarraram-se ao chão...
Ah! que vontade de criar raízes!
Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural
O CÁGADO
Morava no fundo do poço.
E nunca saiu do poço.
Costumava tormar sol numa saliência da parede,
quando a água chegava até ali.
Nas raras vezes que isto sucedia, ficávamos a olhá-lo
impressionados, como se estivéssemos diante do
Homen da Máscara de Ferro.
Que vida!
Era o único bicho da casa que não sabia os nossos
nomes, nem das mudanças de cozinheiras, nem o
dia dos anos de Lili.
Não sabia nem queria saber.
Mario Quintana
In 'Sapato Florido' (1948])
QUANDO EU MORRER
Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!
Quero ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...
Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...
E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...
Mario Quintana
In Os Melhores Poemas
XXXI
É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...
E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!
Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:
Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine...
Mário Quintana ,
in A Rua dos Cataventos
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