sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
UNI-VERSO
“Treme a folha no galho mais alto" - escrevo.
Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom
da terra, do capim chovido...
Parece que quer vir um poema...
Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente,
a linha que escrevi no alto da página.
Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos.
Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras.
O vento fareja-me a face como um cachorro.
Eu farejo o poema.
Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte,
mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em um único verso?
Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)
Mário Quintana,
in caderno H
A MESMA CANÇÃO
A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.
Albano Martins
In "As Escarpas do Dia"
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
OS CAMELOS
No deserto,
no deserto,
cem camelos,
mil camelos.
De longe e de perto
todos dizem ao vê-los:
- Como pode ser deserto
se está cheio de camelos?
Sidónio Muralha
(1920-1982)
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
AGRIDOCE
Um pouquinho de sol,
E o jardim gotejante goteja luz,amor.
Um pouquinho de sol,
E os olhos que choram chorarão luz, amor!
Juan Ramón Jiménez
Tradução de Manuel Bandeira
UNIVERSO
Teu corpo: ciúmes do céu.
Minhalma: ciúmes do mar.
(Pensa minhalma outro céu.
Teu corpo sonha outro mar).
Juan Ramón Jiménez
Tradução Manuel Bandeira
POEMA
A alma que nasce em nós quando nascemos
é a mesma que nasce em nós quando morremos?
E quando em nós tudo se esvai, se esquece,
quem sabe se um outro sol é que aparece?
Ah, o sol que nasce em nós quando nascemos
que a todo instante temos, e não vemos,
será a luz de Deus, quando morremos?
E só então nós nos revelaremos
nos círculos mais fundos onde ardemos?
E só então, no escuro, nos veremos?
Alphonsus de Guimaraens Filho
In O Tecelão do Assombro
O APELO
Em tuas mãos roda o mundo: deixa-o rodar,
Senhor! deixa-o rodar nessa harmonia
que nos tortura e ao mesmo tempo comunica
febre e frio, uma febre de estrela, ah! deixa-o rodar!
Que ele se esbarronde, que se parta, que se esfacele,
deixa-o rodar!
Deixa-o rodar em nós, meu Deus, partículas atônitas
que só em nós mesmos ardemos, ardemos e nos consumimos,
e só em nós mesmos nos despenhamos,
e ninguém vê a nossa luz!
Mas o Universo é teu, soberba máquina que untas,
que lubrificas com um amor insaciável,
mas o Universo é teu e se somos cinza e vento,
se somos esta noite particular, inconfundível,
se somos esta solidão sem sonos contemplando
uns olhos que não se vêem e latejam nas trevas,
dá-nos,Deus, a vertigem: ah! deixa-nos rodar!
Deixa-nos rodar, rudes engonços, deixa-nos ir,
folhas que o vento atira nos desvãos
do tempo, ah! deixa-nos ir na roda eterna às vezes
áspera, denticulada,
deixa-nos dilacerar a grande e odiosa
face que nos contempla,
deixa-nos investir contra o silêncio absurdo
que é nosso e do Universo,
ah! deixa-nos fugir, partir, nunca voltar!
Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo
ANDORINHAS TÊNUES
Meu Deus, eu vago em andorinhas tênues,
Eu percorro os caminhos da loucura
E,é certo, um dia não regressarei.
É tudo louco. E denso.É louco.É louco.
Olhos que suspirais pelas partidas,
Mãos de anjos que o vento embalde trouxe,
Decepadas, sangrantes, torturadas.
Cantos que sobem de mim mesmo. Gritos.
Alguém que espera. E a luta. E esta certeza
De que somente ficará pulsando
Minha medonha lucidez, pulsando
E remordendo e alucinando, embalde!
Veio alguém de outros dias e me disse
Que eu estava a sonhar pelos caminhos.
Nem eu sabia, nem acreditei.
Quem sabe não estarei morto e sepulto
Naquele túmulo que ninguém conhece
E que me lembra o século XIV?
Ó mãos dos anjos, perfumai-me o rosto!
Cantai de manso, adormecei a bruma.
Voai ao mundo que diviso apenas.
Vêde a distância, o céu, o mar da infância.
Vêde que estendo as mãos e encontro o choro
E encontro a treva e a solidão. Sonhai!
Meu Deus, eu vago em andorinhas tênues
E é tudo longe e é tudo muito longe
E é tudo denso e louco. É tudo louco!
Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos
domingo, 23 de fevereiro de 2014
O JARDIM
Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.
Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.
Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.
António Ramos Rosa,
in "Volante Verde"
A PEDRA
A pedra é bela, opaca,
peso-a gostosamente como um pão.
É escura, baça, terrosa, avermelhada,
polvilhada de cinza.
Contemplo-a: é evidente, impenetrável,
preciosa.
,
in "Ocupação do espaço"
CADA ÁRVORE É UM SER PARA NÓS
Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
A árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses
António Ramos Rosa,
in Cada Ávore é um ser para ser em nós (2002)
SILÊNCIO
Silêncio:
encontrámos na encosta
flores ainda sem nome
José Tolentino Mendonça,
em "A Papoila e o Monge"
sábado, 22 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
XII
Quero viver esta terra como a árvore.
Frutificar a árvore como um tempo.
Purificar-me no tempo como o girassol
que do tempo tem a haste e o farol.
Quero a essência da essência,
a que fixa ao forte
para que o forte sobreviva.
Quero brincar neste beco como a roda
que se caminha
e se repete.
E repetindo é roda
e barca ao mesmo tempo
e coração que aguarda
e sofre morrer docemente.
Quero serenar a ternura
e distribuir o amor demasiado
em destino para toda multidão.
Lindolf Bell
In Ciclos
ANDORINHAS ESCREVEM NO AR
Guardo da infância
andorinhas escrevendo
no ar
Hoje
recolho ainda
andorinhas escrevendo
no ar
Andorinhas
não publicam
nem declamam
o que escrevem
no ar
Entendi a escrita minha
ao entender a escrita da andorinha
Lindolf Bell
In: O Código das Águas
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
CANTO ÍNDIO
Sou índio.
Sou bravo, sou forte,
sou filho das matas
que vão sendo destruídas
com seus bichos, seus frutos,
suas fontes, seus aromas,
seu mistério.
Sou índio.
Sou íntimo da Lua e do Sol
e das águas.
Sou amigo de todos os seres da Terra.
Sou um com a natureza.
Sou índio.
Tenho a pele vermelha.
Canto e danço,
sinto e penso,
amo e poemo.
Venero os meus mortos,
reverencio os espíritos,
adoro o Grande Deus.
Que mais querem saber
para concluir que sou homem?
Já estava aqui
quando os outros vieram.
Mas não é isso o que importa.
A natureza tem todas as cores.
E a terra é de todos os homens.
Sou índio.
Sou um com a natureza.
Conclamo o Saci, a Iara,
o Boitatá, o Curupira,
todos os espíritos, Tupã
e os homens de qualquer cor
para velar por estas matas
e por estes rios.
A Terra é de todos.
Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)
MARIPOSA
Uma grande e negra mariposa,
dessas que chamam de bruxa,
desdobrou as asas ondulantes como as da arraia
no mar iluminado de minha sala.
Dizem que o pó de suas asas enceguece,
que traz mau agouro...
Voa, mariposa, voa!
descreve no ar elipses de beleza!
e mostra aos nossos olhos tímidos
que és, como nós, irmã,
uma sílaba do verbo divino.
Anderson Braga Horta
In Pulso (2000)
CISNE
Flutuo cisne em branquicento oceano.
Se um canto é necessário, este é meu canto.
Se forçoso é querer, apenas queira
insolitário naufragar no porto.
Memória de mim-mesmo e desses outros
que fui (que não serei) já me não punge,
e enxuto imerjo o branco olhar sem marcas
de terras nem de céus em pranto insosso.
Guardo apenas, do outrora, a face exígua
do futuro que nele se implantava.
Guardo silêncios de contidas barcas.
E da memória nos abismos graves,
peixes nadando em fosco mar inútil,
tentam voar as subterrâneas naves.
Anderson Braga Horta
In Incomunicação (1977)
CHUVA MÚLTIPLA
—O céu se liqüefaz, e é pura dádiva,
bênção de Deus à gleba ressequida.
—Como chove! Hoje o mundo acaba em água.
Morreremos talvez antes de frio...
—Amor! olha que céu! Felicidade
ele proclama, em fogos de artifício.
—Qual o novo Terror que assim desata
ruivos espasmos de fuzilaria?
—É Deus! é Deus que chora um pranto amargo
sobre as tolas cabeças de seus filhos.
—O céu é feito uma oficina. Olhai os
seus gritos rubros de metalurgia!
—São Pedro está zangado. Ouve seu látego
estalando no céu! Dorme, querido...
Anderson Braga Horta
In Incomunicação (1977)
ARCO-ÍRIS
Nuvens de chuva sustentam, plúmbeas,
o peso claro do céu nas costas,
roçando o ventre de medo e treva
na terra lúrida azulsedenta.
Vagas de pranto, suor ou cuspo,
lágrimas claras, bagas de espanto,
frígidas caem. Batem as bátegas
nas barbatanas do peixe aéreo.
Pássaro mágico, inalterável
águas espessas do céu rompendo,
és a baleia de outros profetas,
e no teu ventre me sinto bíblico.
Híbrido monstro, porém prolífico,
que nos espaços resfolgas grávido,
és a aliança do céu com a terra,
do azul com o verde, do Homem com o Mito.
Talvez por isso vem te seguindo
—filho bastardo da luz com as águas—,
íntimo e belo vem te seguindo,
com as mãos tocando-te, o arco-íris.
Mãos irisadas, benditas mãos.
Mãos luminosas que vão abrindo
vivas clareiras de sol na treva.
Mãos que Natura nos céus eleva.
Por essas lúcidas mãos guiado,
pássaro cego, peixe vendado,
ao porto aportas de um céu mais claro.
Por essas lúcidas mãos guiado,
pássaro-peixe-flor de metal,
teus olhos vítreos vêem a aurora,
teus olhos vítreos mordem a aurora,
bebem a aurora que flui no céu.
Sinuosos fios d’água costuram
a terra embaixo. No azul agora
pairas tranqüilo, porque te miram,
te esperam glebas aquabordadas.
Ao seu encontro, pássaro, desces,
(me sinto antigo, me sinto bíblico)
baleia, desces enfim e pousas,
no chão repousas — e nos vomitas.
Anderson Braga Horta
In Incomunicação (1977)
MEDITAÇÃO SOB A CHUVA
Estas águas banharam outras terras,
foram rios e lagos, foram mares,
nos céus flocos de espuma e depois chumbo,
relâmpagos, trovões e depois água.
E, no eterno girar do eterno ciclo,
o céu as verte sobre nós agora.
Como um jardim, uma árvore, uma ave,
a terra, a natureza, aqui, desnudo,
de suas bagas vou colhendo o sumo.
Possa, sob o seu signo, como outrora
e sempre, o estrume redimir-se em flores.
E eu possa, no bebê-las, compreender
a experiência milenar que bebo.
Vento, chuva, relâmpagos — matéria
contemporânea a todas as idades,
passageira de todas as viagens,
moradora de todas as paragens,
possamos compreender que, de ti feitos,
somos cosmopolitas por herança,
somos intemporais, se não na forma,
ao menos na substância.
Anderson Braga Horta
In Marvário (1976)
PEIXES
Sob a noite imensa,
luz é um grito ao longe.
Tudo o mais é a treva
em que laboramos,
peixes transitando
num quinhão de pranto
do infinito oceano,
sob a noite imensa,
olhos espantados
para cima, guelras
o negror filtrando.
Peixes metafísicos
arranhando o abismo,
nossos olhos brancos
cega-os o invisível.
Anderson Braga Horta
In Marvário (1976)
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
CÃO
Cão passageiro,
cão estrito, cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!
Alexandre O’Neill
em Abandono Vigiado,
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
FRUTOS
Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.
Eugénio de Andrade,
in Poemas
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
PRIMAVERA NA SERRA
Claridade quente da manhã vaidosa.
O sol deve ter posto lente nova,
E areou todas as manchas,
Para esperdiçar luz.
Dez esquadrilhas de periquitos verdes
Receberam ordem de partida,
Deixando para as araras cor de fogo,
O pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e seca, se faz verde,
Vermelhe e castanha, entre os mochoqueiros,
Braúnas, jatobás e imbaúbas do morro,
Na paisagem que um pinto daltônico
Pincelou no dorso de um camaleão.
E o lombo da serra é tão bonito e claro,
Que até uma coruja,
Tonta e míope na luz,
Com grandes óculos redondos,
Fica trepada no cupim, o dia inteiro,
Imóvel e encolhida, admirando as cores,
Fatigada, talvez, de tanta erudição...
João Guimarães Rosa,
In Magma
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